10 mayo
2015
escrito por jurjo

A imperiosa necessidade de uma teoria e prática pedagógica radical crítica: 

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Diálogo com Jurjo Torres Santomé

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João M. Paraskeva. Universidade do Minho, Braga, Portugal

Luís Armando Gandin. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Álvaro Moreira Hypolito. Universidade Federal de Pelotas, UFPel

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.Currículo-sem-Fronteiras-

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Curriculo sem Fronteiras

Vol. 4, nº 2, pp. 5 – 32, Jul.- Dez. 2004

 

Resumo

Entrevista com o professor Jurjo Torres Santomé, na qual ele discute o tema da educação, globalização e currículo, centrando sua análise na crítica ao pensamento conservador e neoliberal hegemônico no processo de reestruturação educacional em curso. Vários aspectos da realidade educacional espanhola e mundial são analisados, o que permite uma visão clara da sua compreensão acerca das principais temáticas do campo do currículo, envolvendo ensino, métodos, políticas educacionais, reformas educativas, globalização e neoliberalismo.

Abstract

Interview with Professor Jurjo Torres Santomé, in which he discusses issues related to education and curriculum and its relation to globalization. Santomé focuses his analysis on the critics of hegemonic, neo-conservative and neo-liberal educational restructuring. Several aspects of the educational context in Spain and throughout the world are analyzed, bringing a better understanding of curriculum, and themes such as teaching, methodology, educational policies, educational restructuring, globalization, and neoliberalism.

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Currículo sem FronteirasVocê esteve profundamente ligado ao PSOE [Partido Socialista Operário Espanhol] e profundamente envolvido – na concepção e implementação – na reforma educativa na Espanha. Posteriormente, você se retirou e anunciou o rumo que a reforma viria a assumir. Quais as razões que o levaram a afastar-se de um projeto político importante, no qual esteve profundamente envolvido?

Jurjo Torres Santomé – Eu fui assessor do Ministério da Educação e Ciência nos dois primeiros governos do PSOE, apesar de nunca ter sido militante desse partido. Eu sempre me mantive mais à esquerda. Durante os anos em que estudei na Universidade de Salamanca, fui ativista num grupo nacionalista de ideologia comunista, na UPG (Unión do Povo Galego), que atualmente integra o BNG (Bloque Nacionalista Gallego), coligação que reúne diversos partidos e movimentos sociais nacionalistas da Galícia. A Galícia é uma das províncias que fazem parte da Espanha (juntamente com o País Basco e a Catalunha) e que reivindica maiores cotas de auto-governo no Estado Espanhol. Apesar de não ser atualmente militante de forma organizada, todos os que me conhecem sabem que simpatizo e apoio o BNG. No entanto, quando o PSOE foi eleito em 1982 para governar a Espanha, toda a esquerda concordou em apoiar a primeira experiência progressista no país depois da longa e cruel ditadura do General Francisco Franco Bahamonde. A minha colaboração enquadra-se na aposta da esquerda para democratizar um Estado que uns meses antes tinha sofrido um golpe de estado levado a cabo por um importante grupo de militares, mas que apenas durou algumas horas. Este golpe militar falhado viria a provar que a democracia era algo ainda muito débil. É nesta base que se enquadra o meu apoio ao Governo Socialista. O Ministério reuniu um conjunto de pessoas nas quais confiou a criação de uma lei nova para todo o sistema educativo. Pretendia-se a substituição da Lei Geral da Educação, que tinha sido promulgada em 1970 durante o Governo ditatorial do General Franco. O meu trabalho foi muito intenso, dado que colaboro no sentido de pôr em marcha diversos programas e iniciativas para ajudar os professores na defesa de uma educação pública com mais qualidade. Além disso, junto com outros colegas, entre eles, José Gimeno Sacristán, Angel Pérez Gómez, Alvaro Marchesi, César Coll, Jesús Palacios, fomos incumbidos de decidir como deveria ser a educação neste país, construir uma nova Lei. Durante duas legislaturas fomos criando o projeto de uma nova lei, a LOGSE (Lei Orgânica Geral do Sistema Educativo) que viria a ser aprovada em 1990. Eu colaborei ativamente com o Ministério da Educação desde 1989, altura em que o Projeto da Lei começou a ser debatido no Parlamento Espanhol. Nesses últimos quatro anos as minhas divergências aumentaram, pois havia programas que se iam atrasando sem justificações convincentes: programas dedicados a promover bibliotecas escolares e salas de aula, propostas para incentivar o uso de mais variedade de recursos didáticos nas escolas, relegando os livros escolares para um lugar mais secundário. Propus que os documentários que a Televisão Espanhola produzia e que por essa razão eram financiados com dinheiro público se distribuíssem em todas as escolas. Não entendo como é que qualquer pessoa pode ter acesso através da televisão a documentários sobre os rios da Espanha, os montes, a vegetação, obras de teatro representadas pelas melhores companhias de teatro, concertos de música, etc., financiados com dinheiro público e, por outro lado, nas escolas os mesmos temas são reduzidos nos livros escolares a quatro ou cinco linhas incompreensíveis. Pareceu-me que esta idéia era boa e com custos reduzidos, bastava gravar em fitas de vídeo, uma vez que os restantes custos de produção já tinham sido bancados pelo Estado. Também propus que se incentivasse a criação de bibliotecas temáticas de divulgação. Tratava-se de oferecer apoio econômico às editoras para publicar livros de divulgação científica de forma a que os alunos fossem entrando em contato com livros bem concebidos, bem escritos e documentados, elaborados por autênticos especialistas.El Lissitzky

Logicamente este tipo de medida não era bem vista pelas principais editoras de livros. As pressões foram muito fortes e este tipo de proposta nunca foi avante, foi sendo adiada muitas vezes. Assim, nem sequer nos deixaram participar no modelo de programa. Curiosamente, José Gimeno, Angel Perez e eu (os três únicos pedagogos da equipe) fomos excluídos desse debate e os psicólogos do grupo optaram por recorrer a uma proposta muito mais tecnocrática, praticamente tyleriana, e inundaram o ambiente educativo com uma linguagem claramente psicóloga. Quando decidi abandonar o Ministério publiquei um artigo cujo título expressava claramente as minhas idéias sobre esses acontecimentos: “La Reforma educativa y la psicologización de los problemas sociales” (En VV. AA.: Sociedad, Cultura y Educación. Edit. Centro de Investigación y Documentación Educativa, Ministerio de Educación y Ciencia y Universidad Complutense de Madrid. Madrid, 1991, págs. 481- 503). Era como se a psicologia e mais concretamente o construtivismo, fosse a pedra filosofal que iria resolver todos os problemas do sistema educativo. Curiosamente deu-se um novo fenômeno: o Ministério deixou de fazer política educativa para se tornar numa espécie de Faculdade Universitária dedicada a incentivar e legitimar oficialmente o construtivismo psicológico. No entanto, o verdadeiro motivo que me levou a deixar de colaborar com o PSOE foi o fato de terem cometido um erro para o qual vínhamos a chamar à atenção durante anos: não houve nenhum compromisso oficial no sentido de financiar a nova Lei. Aprovar no Parlamento ou no Senado uma Lei sem um programa de financiamento concreto era como aprovar uma cortina de fumaça. Era claro que não havia dinheiro para a Educação e o pouco era gasto para os professores freqüentarem cursos acerca do construtivismo em psicologia. Mas, como me diziam alguns professores: o que fazer depois nas aulas com o construtivismo? Nem sequer se aproveitou para tentar alterar a formação base dos professores.

A LOGSE é uma lei que manteve a formação dos professores tal como estava. No fundo parecia que o Ministério pensava que bastava legislar para mudar a vida nas escolas. Em resumo, penso que a Espanha desperdiçou um momento decisivo em que todos estavam dispostos a colaborar e a ajudar. Nunca a esquerda esteve tão unida. A partir dessa altura, o ambiente foi piorando e o Partido Popular, à direita, chegou ao poder e lá continua.

Currículo sem Fronteiras Ao nível da União Européia, a realidade tem demonstrado nos últimos anos, que as gestões socialistas e sociais democratas têm-se confundido, sobretudo nas áreas judicial, da saúde e da educação. Tomando como exemplo o caso da Espanha e no que diz respeito às políticas educativas e curriculares, que paralelismos poderia estabelecer entre o período de governo socialista e o período atual liderado pelo Partido Popular?

Jurjo Torres Santomé – Sou dos que pensa que na Europa ainda há diferenças entre social democratas e socialistas e os conservadores e neoliberais dos partidos de direita. No entanto, os primeiros confiam no Estado e lutam por consolidar o Estado do Bem Estar. Ainda existe uma forte idéia de Estado como garantia de serviços tais como saúde, educação, seguridade social, aposentadoria, habitação, serviços sociais para a terceira idade, etc. Isto é mais visível nos países nórdicos. No sul, onde este estado de Bem Estar foi sempre fraco, como, por exemplo, em Portugal e na Espanha (entre outras razões, devido aos grandes períodos de ditaduras militares a que ambos estiveram sujeitos), as políticas para abandonar o passado e passar a reger-se por completo pelo mercado são mais claras nos partidos de direita. Contudo, nas últimas décadas tem de se reconhecer que os partidos socialistas e social-democratas têm adotado cada vez mais políticas neoliberais. O caso mais visível é o do Reino Unido em que a Terceira Via dos trabalhistas de Tony Blair quase se transformou num estratagema lingü.stico para encobrir as políticas econômicas neoliberais. Uma coisa preocupante é a obsessão que tem, por exemplo, na Espanha, o PSOE para atrair os votos da direita. Isto leva ao abandono de tudo o que eram os seus símbolos identificadores, cedendo na luta pelos grandes ideais para atrair uma direita capitalista que o levará a tomar atitudes pouco claras, levando a que população vote à direita, pois é a única leitura clara e sem ambigüidades que consegue fazer. Vivemos num mundo onde a direita controla os meios de produção e em especial, os meios de comunicação, algo em que até há pouco tempo a esquerda era mais poderosa.

Não há muitos anos a esquerda tinha mais facilidade de divulgar as suas mensagens, de promover debates intelectuais importantes com idéias e propostas de ação. Atualmente, um dos grandes problemas da esquerda é o acesso à televisão, ao rádio e à imprensa. A direita aprendeu a controlar habilmente estes meios e existem muitas pessoas que acreditam que não existem nem discursos nem modelos alternativos. Obviamente estão fortemente censurados. Os social-democratas parecem entrar nesse jogo. A direita deixa-lhes pouco espaço para aparecerem nos grandes meios de comunicação social, no entanto exige contrapartidas: exige-lhes que baixem o valor das suas propostas. Assim, por exemplo, na Espanha o PSOE tem apenas um jornal ao seu serviço, o “El País” (de grande tiragem e muito êxito); no entanto este jornal não aceita um pensamento mais à esquerda. Assim, qualquer analista de imprensa estrangeiro poderia constatar que na Espanha não existe Esquerda Unida (uma coligação em que está integrado, entre outros, o Partido Comunista) ou o Bloco Nacionalista Galego, apesar de serem coligações com representação no Parlamento e no Senado. Esta censura vai aumentado se, para além de se ser de esquerda, for “nacionalista de esquerda”. Aqui a manipulação passa a ser escandalosa, pois o discurso oficial tanto da direita espanhola como do Partido Socialista é tão manipulador que apresentam os nacionalistas de esquerda como se tratassem de nazistas (o Partido Popular, que na realidade é ultranacionalista, ou seja, tem um discurso fortemente nacionalista e conservador só que com outras fronteiras, as do Estado Espanhol. Analise-se a política de imigração que é defendida pelos partidos que dizem que não são nacionalistas e veja-se como é que se explica a notícia sobre o direito de admissão de trabalhadores de outros países). Nada mais longe da realidade. Eu considero-me nacionalista de esquerda e toda a minha vida tenho lutado contra as idéias e práticas da direita e contra algumas da esquerda espanhola; não me sinto de forma alguma representado pela imagem oficial que se tem da cidadania do que é o nacionalismo e em concreto do nacionalismo de esquerda.

Currículo Sem FronteirasNo artigo “Democracia, Instituições Escolares. Diversidade e Justiça Social” você defende a educação como uma dimensão da política cultural de uma determinada sociedade, não só destacando que as questões curriculares devem ser consideradas no âmbito mais amplo da política cultural, como também denunciando toda a proposta curricular como a resultante de opções entre distintas parcelas da realidade. Assim, e uma vez que o currículo, na seqüência do que nos propõe também Forquin, expressa o resultado de uma intencional seleção no seio de uma dada cultura, como será possível efetuar esta seleção por forma a que se promova a justiça e igualdade sociais, numa época em que, mercê das políticas neoliberais, se assiste cada vez mais, à cristalização do espectro da segregação.

Jurjo Torres Santomé – Penso que a segregação é um dos grandes problemas do século que agora se inicia, o século XXI. Pode-se afirmar que este problema sempre existiu, no entanto atualmente está a aumentar devido aos modelos econômicos neoliberais que dominam este mundo globalizado. Se há algumas décadas se dizia que no mundo existiam países em vias de desenvolvimento, também se acreditava que se uma vez desenvolvidos continuariam nesse grupo para sempre. Hoje em dia aquilo que se constata é que são cada vez mais os países em vias de subdesenvolvimento, ou seja, países que tinham entrado em pleno a competir de igual a igual no mercado dos países desenvolvidos, agora sofrem crises constantes, países com economias na bancarrota e com condições de vida semelhantes às dos países mais pobres do mundo. Um bom exemplo é o caso da Argentina. Quem iria imaginar há 30 anos que um dos países mais cultos e ricos como era a Argentina chegaria à situação grave em que se encontra hoje em dia? Ninguém. No mundo da economia observase que dia após dia toda a riqueza e os recursos estão mais concentrados. Basta consultar o ranking das pessoas mais ricas do mundo que a revista Forbes publica periodicamente. Um autêntico escândalo! A segregação vai aumentando, embora em muitas alturas até chegue a dissimular-se. Pensemos como nos últimos anos apareceu um fenômeno completamente novo: a “pobreza vergonhosa”, ou seja, um grupo de pessoas que não nasceram em famílias pobres, tendo pelo contrário, nascido em famílias da classe média e até classe alta, que fizeram parte dessas classes durante muitos anos e que fracassaram na profissão chegando até à pobreza. Essas pessoas tentam esconder de todas as formas, gastando inclusivamente o pouco dinheiro de que dispõem em roupa e objetos para dissimular e ocultar assim a sua pobreza. Porque é que não se unem, protestam e lutam por outro tipo de sociedade e de mundo? Isto acontece essencialmente porque os discursos dominantes convenceram-nos, não só a eles como a uma grande parte da população, de que vivemos em sociedades em que já existe igualdade de oportunidades, por conseguinte agora as diferenças sociais são fruto de esforços individuais, do valor individual ou inclusive, dos genes. Ninguém é responsável por esses fracassos individuais, só cada um deles individualmente considerados. É terrível! Logicamente, na construção desses discursos, a escola também tem algumas responsabilidades, é óbvio que não as principais, mas desempenha um papel importante no desenvolvimento das pessoas para pensar, julgar e poder intervir em assuntos coletivos, públicos.

Jonathan DarbyHá alguns anos tenho denunciado a degradação dos conteúdos dos livros didáticos. Contudo, continuam a existir demasiados temas que não são objeto de atenção nos conteúdos lecionados nas aulas. No entanto nas análises de matérias curriculares que faço periodicamente, as escolas continuam a pensar que no mundo só existem homens de raça branca, de idade adulta, que vivem em cidades, empregadas, cristãos, de classe média, heterossexuais, elegantes, saudáveis e robustos. Dificilmente nos conteúdos de tais livros se encontra informação sobre temas como: a vida quotidiana das mulheres, das raparigas, rapazes e adolescentes: sobre a situação das etnias oprimidas e os porquês das suas condições de vida; o que acontece às culturas das nações sem Estado? Por que as reprimem e tentam exterminar os seus idiomas e as obrigam a aceitar as línguas e culturas dos países hegemônicos? O que é que se ensina aos alunos sobre a vida das pessoas desempregadas, sem trabalho, sobre as injustiças que sofrem as pessoas no seu trabalho, sobre como podem defender-se? Que formulas de organização dos trabalhadores se ensinam para lutar por outras formas de produção e distribuição mais justas e democráticas? Como se explica a pobreza e por que aparece? Onde e quando se estuda a vida quotidiana das pessoas que vivem da agricultura e da pesca; as injustiças que enfrentam, a escassez de recursos de que dispõem devido à sua concentração exclusivamente nas cidades? Como podem defender-se e com o quê, os trabalhadores com baixos salários e suportando más condições de trabalho? Por que é que a vida das pessoas com menos capacidades físicas e/ou psíquicas é tão dolorosa e injusta? Como é que se explica que além de pessoas heterossexuais existem gays e lésbicas? Como se explicam as injustiças e situações de marginalidade dos homossexuais? Como se estuda a situação das pessoas idosas e doentes? Que idéias acerca do ser humano e do mundo são as mais acertadas e dignas? Que dizer sobre as religiões não cristãs ou das explicações atéias acerca do mundo?

Não é justo que os alunos durante a escolaridade obrigatória não cheguem a conhecer e refletir sobre as relações de poder existentes nas sociedades em que vivem esses grupos que sofrem de alguma forma de marginalização, a classificação, o seu valor e os motivos pelos quais apareceram essas situações de marginalidade no mundo em que vivemos.

Tenhamos presente a luta das mulheres, dos grupos étnicos sem poder, dos povos sem estado, dos gays e lésbicas, etc., que deram relevo através do seu poderoso ponto de vista na definição do que vinha a considerar o conhecimento válido e necessário, a grande desigualdade de oportunidades e, como tal, as situações de injustiça a que estavam sujeitas as pessoas que faziam parte desses grupos. Uma escola comprometida com a justiça social e a liberdade tem de incluir estes ternas como conteúdos dos programas para os estudantes. É obrigatório se queremos formar cidadãos, ou seja, pessoas com informação e competências para analisar e avaliar a vida quotidiana não só da sua comunidade como a de dos povos mais distantes. Uma escola em que a escolha das matérias dadas oculte ou altere as condições de vida de grupos silenciados será uma escola opressora, injusta e colonizadora. É tudo o contrário da razão de ser desta instituição.

Currículo Sem FronteirasNum outro trabalho “As culturas negadas e silenciadas no Currículo” você, entre outras questões cruciais, denuncia o currículo como um mecanismo de constante desvalorização de determinados quadros culturais, alertando para a necessidade de perceber a perigosa tensão entre os valores que preparam as pessoas para a cidadania e para o mundo do trabalho. Você acha que a temática da cidadania tem sido educativa e curricularmente bem tratada, ou tem sido apenas mais uma mera estratégia política construída em redor de um significado flutuante?

Jurjo Torres Santomé – Efetivamente, parecem-me muito preocupantes os silêncios e desvalorizações, a maioria das vezes conseguidas recorrendo a subterfúgios, de muitos grupos sociais que estão mais longe dos grupos sociais com maiores possibilidades de acesso a estruturas de poder e com maiores fontes de poder nas suas mãos. Esta situação agrava-se nas sociedades neoliberais, onde o mercantilismo a que submetem o sistema educativo leva a que determinadas matérias escolares sejam vistas como pouco interessantes, pois não são exigidas pelas empresas no mercado de trabalho. Os mercados fomentam o espírito empreendedor, mas não estão interessados numa cidadania preocupada com assuntos como a justiça e as responsabilidades sociais. As pessoas apenas são importantes como consumidoras, não como cidadãs. A cidadania que sempre se preocupou em conseguir mais justiça social e igualdade de oportunidades agora pode ser substituída pelos consumidores que apenas se regem pelas leis do mercado: a sua preocupação é ter liberdade para escolher e competir. Esta diferença de filosofias é o que explica que uma grande percentagem de pessoas pertencentes às novas classes médias já não se preocupam tanto com a política social, nem pela democratização da educação, nem por novos modelos educativos mais próximos das idiossincrasias dos alunos. A sua obsessão é que nas escolas os seus filhos obtenham boas notas sem nunca chumbar1 durante o curso e, se possível, que os convertam e transformem em pessoas obedientes à autoridade.

Não podemos esquecer que as escolas são um dos locais em que a sociedade delega a tarefa de socializar as novas gerações; o que significa ajudá-los a entender as condutas, tipos de inter-relação, formas de trabalho, estratégias de raciocínio, os juízos e valores que explicam o modo de ser das pessoas que fazem parte da sociedade em que os alunos são parte integrante, assim como as outras comunidades diferentes. Este processo, por sua vez, tem de servir para desenvolver todo um tipo de destrezas e valores que lhes permitam integrar-se como cidadãos na sociedade, de uma forma reflexiva e crítica. Uma missão tão importante implica, entre outras coisas, dedicar atenção às matérias culturais que se selecionam para atingir tais objetivos.

Este debate sobre a cultura escolar é um dos que pode suscitar as polêmicas mais comuns. Há muito tempo que os analistas do programa oculto e explícito têm trazido à luz enormes contradições nos valores que a escola promove sobre os diferentes modelos de vida e os produtos culturais mais importantes gerados pela sociedade, sobre o mais valioso da herança cultural. No decorrer da análise realizada pelo Ministério da Educação para a seleção cultural com o objetivo de impor conteúdos obrigatórios às escolas é fácil concluir que determinados grupos sociais fiquem melhor preparados do que outros, em relação a artefatos culturais, tecnológicos e científicos produzidos pelos grupos mais elitistas que são considerados os mais importantes. São as posições de poder e privilégio que detêm determinados grupos sociais que têm por hábito explanar muitos dos conteúdos culturais escolhidos como obrigatórios para as aulas.

Dena MatarMas, apesar da intenção de controlar a cultura e de modificar os conteúdos para os apresentar como neutros, desinteressados, à margem da política, nas últimas décadas, mostrou-se na nossa sociedade um grande consenso acerca de determinadas tarefas e conteúdos que deveriam fazer parte do programa escolar. Assistimos a como as escolas dia após dia enfrentam as novas propostas da sociedade. Além de lhes exigir um aumento do nível cultural das novas gerações, atribuiu-se-lhes o incremento do desporto, de hábitos pessoais saudáveis, de educar para o ócio e tempo livre, de ensinar uma alimentação saudável, persistiram muito mais na informação acerca do comportamento cívico. Até a pouco tempo, a maioria das pessoas considerava estes assuntos uma obrigação exclusiva das famílias, porém hoje em dia existe legislação para que também sejam tarefas obrigatórias das escolas. Os nomes das matérias transversais são um bom exemplo desta nova extensão do significado e da missão das instituições escolares: “educação para a saúde e qualidade de vida”, “educação moral e cívica”, “educação sexual”, “educação ambiental”, “educação para a paz”, “educação do consumidor”, “educação para a igualdade de oportunidades entre os sexos”, “educação para o ócio”, “educação para a vida”.

No entanto, os últimos anos de governo do Partido Popular na Espanha, e em particular com a promulgação da Lei Orgânica de Qualidade da Educação (Dezembro de 2002), os resultados estão a ser notáveis. Assim, por exemplo, uma das ausências preocupantes no programa proposto pela Administração (outra coisa é o que as escolas ensinam na realidade) é o abandono do que se tem denominado, a “Educação cívica ou da cidadania”. Algo que obrigaria os alunos a lidar com temas que se consideram imprescindíveis para poderem exercer os seus direitos e deveres como cidadãos. Temas, entre outros, como a justiça social, o desenvolvimento sustentável, a interdependência e globalização, os direitos humanos e responsabilidades sociais permitiriam aos alunos analisar valores e atitudes, ajudá-los-iam a questionar e explorar as suas próprias concepções do mundo e as que são mais dominantes na sua comunidade e em outras partes do mundo. Poderiam vir a conhecer as interdependências que existem nos produtos com que se alimentam, vestem, se informam e se divertem, e as formas de vida que têm outros povos que, em alguns casos, fabricam esses produtos e, noutros casos, não lhes têm acesso.

É óbvio que estes conjuntos de conteúdos estão dispersos num programa curricular, mas também se constata que grande parte dos cidadãos queixa-se que os jovens não estão informados, nem se comportam como deveriam em tudo o que diz respeito aos seus deveres e obrigações cívicas. A educação transversal que promovia a anterior lei promovida pelo Governo Socialista, a LOGSE (Lei Orgânica Geral do Sistema Educativo, Outubro de 1990), marcou um avanço neste caminho. Os seus resultados práticos ainda não estão suficientemente avaliados, mas podemos comprovar que nos projetos curriculares dos centros e das aulas elaborados pelos professores é dedicado um capítulo exclusivamente a este tipo de temáticas.

Obviamente, conscientizar os alunos e, até os professores de que seria necessário tornar mais visível a realidade nos conjuntos temáticos de que se compõem as matérias que são distribuídas nas aulas (razão pela qual a LOGSE integra a educação transversal), originou situações que não eram do agrado do Governo do Partido Popular. As escolas que sabem que têm obrigatoriamente que trabalhar de uma forma transversal matérias como “Educação para a paz”, “Educação moral e cívica” ou “Educação ambiental”, viram-se obrigadas a canalizar a sua atenção para problemas atuais, como o desastre ecológico na Galícia e todo o norte da Espanha devido à maré negra do petroleiro Prestige, bem como a guerra com o Iraque. Estes dois temas foram vistos como uma ameaça ou um absurdo por parte do Governo conservador de Manuel Fraga Iribarne na Galícia, o que deu lugar à promulgação das “Instruções da Direcção Geral para as Escolas e Preceitos Educativos” (12 de Março de 2003) na tentativa de impedir que estes temas se tratassem nas como conteúdos transversais.

Estas “instruções” servem para intimidar a maioria das escolas, dado que estes dois temas estavam a ser objeto de uma imensa atenção, tanto por parte dos alunos como dos professores. Advertem-se as direções das escolas para que não utilizem locais de anúncios e outras instalações para fins que a Administração apelida de propangandísticos e publicitários. No meu país, Galícia, os dias que se seguiram à divulgação destas instruções foram dedicados pelas escolas ao debate sobre o que fazer com os trabalhos realizados acerca do desastre ecológico do Prestige e da guerra com o Iraque. A conclusão unânime, por aquilo que pude constatar, foi de que iriam continuar com este tipo de tarefas escolares e não iriam ter em conta as ameaças de sanções da parte do Ministério da Educação da Junta da Galícia, dado que se correspondem, pelo menos, com os conteúdos de três das matérias transversais que devem ser lecionandas obrigatoriamente: a “educação ambiental”, a “educação para a paz” e a “educação moral e cívica”. Esta situação de conflito com a Administração é uma boa amostra das intenções dos grupos conservadores que integram o governo do Partido Popular para controlar o conhecimento que se produz e circula nas escolas.

O avanço do neoliberalismo com intenção de criar pessoas consumidoras e não cidadãos, juntamente com a aliança com os grupos sociais mais conservadores preocupados em conformar seres humanos submissos e pouco críticos, militantemente convencidos com verdades que nunca se atrevem a questionar nem a debater, é algo que nos deveria levar a um verdadeiro debate democrático acerca dos conteúdos escolares que são objeto de estudo nas escolas e bem como as próprias metodologias.

Currículo Sem FronteirasO currículo nacional, construído com o intuito de atenuar a desigualdade social, viria a tomar-se num currículo fundamentalista, isto para usar sua própria terminologia. Desgastado como solução política, várias vozes têm tentado promover uma outra plataforma curricular, ornamentando-a com significados outros, nomeadamente, o currículo integrado. Seguindo a sua concepção teórica [e ainda de outros autores e autoras, como Beane, Apple, Ladson-Billings, Greene], que, de todo, não é a dominante, o currículo integrado é de fato a melhor maneira de se “fazer currículo”. Todavia, e é esta a nossa preocupação, você não acha que o debate em torno da integração curricular tem sido colocado de uma forma viciada, uma vez que acontece nos limites impostos pela ditadura disciplinar e algum [embora porventura compreensível] corporativismo da classe docente?

Jurjo Torres Santomé – Se existe uma crítica comum e reiterada ao longo da história do ensino, é a de selecionar, organizar e trabalhar com conteúdos culturais pouco relevantes, de forma nada motivadora para os alunos, correndo mesmo o risco de perder o contato com a realidade. Nesse modelo, as situações e problemas da vida quotidiana, as preocupações pessoais, acabam normalmente por ficar à margem dos conteúdos e processos educativos, fora dos muros das aulas e escolas. Por mais de uma ocasião é normal que o programa tradicional por disciplinas acabe apresentando uma semelhança notável com alguns jogos ou concursos de televisão de sentido nominalista, como, por exemplo, o jogo “Trivial Pursuit”; ou seja, considera-se aprender por se ser capaz de recordar pequenos fragmentos de informação sem entrar em pormenor e, mais grave ainda, sem uma verdadeira compreensão desses conteúdos que se verbalizam. Por exemplo, uma pessoa que diz que o Dom Quixote foi escrito por Cervantes dá a sensação de que tem conhecimentos de literatura, num concurso de televisão até receberiam um prêmio pela resposta à pergunta de quem escreveu Dom Quixote. No entanto, é muito provável que nunca sequer o tenham lido, que não entendam o verdadeiro sentido da maioria das situações que ali são narradas, que não saibam qual a época em que vive e escreve Cervantes, o que estava a suceder naquela sociedade, quais os motivos que levaram o autor a escrevê-la, de que forma influenciou a literatura a partir daí, qual o interesse atual desta obra, etc. Uma análise deste tipo obriga-nos a recorrer a muitas outras informações que são objeto de outras disciplinas. Para fazer frente a esta classe de problemas escolares durante todo o século XX foram criadas diversas estratégias didáticas. Soluções que têm como finalidade tentar converter os conteúdos culturais da escola de forma relevante e significativa.

Georgia O'KeeffeConvém não esquecer de uma das perguntas mais freqüentes feitas pelos alunos aos professores: por que temos de estudar esta cadeira ou este tema? E a resposta mais freqüente do professor costuma ser, adotar uma atitude de transcendência e importância, dizendo que esse tema é importantíssimo para que no curso seguinte o possam entender como qualquer outro tema. Normalmente, serve sempre para o “próximo curso”, nunca para compreender qualquer situação atual ou um fenômeno do presente. Normalmente costumo dizer que o programa curricular se parece com os romances policiais de Agatha Christie. Todo um conjunto de informações com a finalidade de no final da escolaridade tenham sentido e se vejam as suas inter-relações. Nos romances de Agatha Christie com, por exemplo, 200 páginas, passa-se as primeiras 195 páginas fornecendo pistas, sem nunca as percebermos claramente. Sempre nos enganamos no diagnóstico, aquela pessoa que parece ser o assassino é na realidade boa pessoa. O assassino aparece nas últimas cinco páginas e é sempre uma surpresa, sendo nestas páginas que toda a informação anterior passa a fazer sentido. A minha pergunta é: onde estão essas cinco últimas páginas no processo da escolaridade obrigatória? Quando e em que momentos é que o aluno capta a relação que existe entre as diversas disciplinas que tem de estudar? E especialmente, quando se vê obrigado a integrar esses conteúdos oferecidos como peças de um puzzle na tentativa de cobrar plena consciência do quadro que compõem? Desde a minha experiência, penso que unicamente quando trabalham com modelos mais interdisciplinares, mais integrados.
Pensemos que a interdisciplinaridade é um dos conceitos que servem para justificar com maior contundência o programa integrado. Ou seja, a reorganização dos conteúdos, umas vezes para recuperar e outras para construir uma rede mais integrada entre conceitos e modelos e estratégias de investigação que uma subespecialização organizou em compartimentos estanques, não apenas com possibilidades de comunicação, mesmo quando tenham como finalidade analisar e intervir num espaço comum, com os mesmos objetos e/ou pessoas, um fim semelhante, etc. Tenhamos presente que a cultura das especificidades cria numerosos problemas à própria sociedade, pois é comum que diante de algum problema social, industrial, econômico, etc. diferentes disciplinas ofereçam soluções completamente distintas e, inclusivamente, contraditórias. Aquilo que na realidade acontece nessas ocasiões é que cada uma dessas disciplinas toma em consideração determinadas variáveis e ignora e despreocupa-se com outras. Um destes exemplos é o que acontece quando uma comunidade tenta obter mais energia, dependendo dos especialistas a consultar assim serão as propostas. É provável que os profissionais da física optem pela construção de plantas de energia nuclear, enquanto os que têm uma formação com maior peso da biologia, da sociologia, a filosofia etc., é mais provável que se decidam por propostas de intervenção muito diferentes, opondo-se com múltiplos argumentos às soluções dos anteriores. Podemos afirmar que as disciplinas “disciplinam” a forma como se interpreta, ou seja, só nos permitem observar e tomar em consideração a realidade com os conceitos, com as informações, com os conteúdos dessa disciplina que estudamos ou em que somos especialistas. Pensemos nas pessoas com o curso universitário concluído, por exemplo, sociólogas, economistas, psicólogas, físicas, etc. Ou seja, as pessoas que conseguiram concluir e ter êxito no sistema educativo. Quantas vezes nas conversas em que participam especialistas não escutamos reprovações do tipo: Claro, como tu és economista, tudo se resolve com a economia! ou és mesmo psicólogo, pois reduzes tudo a problemas interpessoais, questões de percepção, prejuízos, complexos, …! Frases semelhantes, o que fazem é chamar à atenção para o importante ponto de vista das nossas observações e análises.

Uma estratégia que pode contribuir para resolver problemas semelhantes é a criação de hábitos intelectuais nas pessoas, desde o primeiro momento de sua escolarização, para que se tome sempre em consideração o maior número possível de perspectivas quando se analisa, avalia ou intervém em qualquer situação ou resolução de qualquer problema. É óbvio que não podemos ignorar que esta divisão que domina o pensamento e a forma de atuar da maioria das pessoas que estão ou já passaram pelo sistema educativo não é unicamente resultado de subespecializações científicas e culturais, mas também conseqüência de modelos políticos que incentivam uma exploração de recursos naturais e a exploração econômica, cultural e, numa só palavra, o domínio de umas pessoas sobre outras.

Como conseqüência, falar de interdisciplinaridade é observar as aulas, o trabalho curricular do ponto de vista dos conteúdos culturais, ou seja, investigar quais as relações e os grupos de conteúdos que podem ser postos em prática, por temas, por conjuntos de conteúdos, por áreas de conhecimento e experiência, etc. Conseqüentemente, o programa integrado, é o resultado de uma filosofia sociopolítica e de uma estratégia didática. Tem como fundamento uma concepção do que é a socialização das novas gerações, o sonho de um ideal de sociedade, do sentido e do valor do conhecimento e, para além disso, do como se podem facilitar os processos de ensino e aprendizagem. Não nos esqueçamos que as questões curriculares são uma dimensão diferente, mais à imagem de um projeto de maiores dimensões de cada uma das sociedades, como é exemplo a política cultural. Qualquer proposta curricular implica opções sobre parcelas da realidade, partindo da idéia de seleção cultural que se oferece às novas gerações de forma a facilitar a sua socialização: com o intuito de os ajudar a compreender o mundo que os rodeia, conhecer a sua história, valores e utopias. O mesmo podemos concluir do programa curricular, o puzzle, nas palavras de Basil Bernstein, onde o parcelamento não é mais do que uma conseqüência da divisão e hierarquização da própria vida social. O programa é dividido em disciplinas ou temas, subdivididas então em grupos de conteúdos ou lições, em conteúdos, capacidades e valores; em trimestres, semestres, cursos acadêmicos e etapas educativas; o horário escolar é dividido em grupos rígidos que separam as atividades que deveriam ter maior continuidade: os professores subdividem-se em departamentos (a maioria das vezes de forma incoerente): o corpo docente isola-se da comunidade. etc.

Por outro lado, este tipo de divisões, são vistas como um dado adquirido, como algo que sempre foi assim e que não pode ser de outra forma; são questões que raras vezes são questionadas ou revistas, visto que não se assumem como algo que é assim porque algures, algumas pessoas que optaram por esta estrutura tiveram o poder suficiente para convencer os restantes profissionais de educação. E colocada de parte a análise dos interesses ideológicos, políticos e econômicos que estão por detrás da atual organização curricular do conhecimento, dos temas e conjuntos de conteúdos que são selecionados como foco de atenção para as aulas e centros de ensino.

O problema das escolas tradicionais, onde se dá uma forte ênfase aos conteúdos apresentados em pacotes de disciplinas, é que não acreditam que os alunos sejam capazes de ver esses conteúdos como parte do seu próprio mundo. Quando a física, a química, a história, a gramática, a educação física e as matemáticas não são visíveis para a maioria dos estudantes é fácil que tudo o que é ensinado nas aulas só se entenda como “estratégia” para os aborrecer ou, de uma forma mais otimista, ser o preço a pagar para que possam transitar de curso para curso com a esperança de obter uma licenciatura e depois logo se vê o que acontece. A instituição escolar aparece como o reino da artificialidade, um espaço em que existem umas normas particulares de comportamento, em que se fala de uma forma peculiar e em que não é necessário executar determinadas rotinas, que apenas servem para obter felicitações ou sanções por parte dos professores e, inclusive, das próprias famílias, mas não passa disso. Muitos estudantes chegam a assumir, levando em consideração a forma como levam a vida nas aulas, onde se torna muito difícil estabelecer uma interligação com a vida real, com os problemas e realidades mais quotidianas ou que isso apenas está reservado para as pessoas mais inteligentes, aos seres excepcionais. Desta forma, contribui-se para a continuação da mitificação do conhecimento, ocultando-se as condições da produção bem como as respectivas finalidades e perigos.

Não dar atenção a esta artificial compartimentalização que se estabelece entre a vida acadêmica e a vida exterior às escolas que pode até pôr em perigo o fim da escolaridade, em especial nos anos obrigatórios, ou seja, preparar os cidadãos para entender a realidade, a sua história, tradições e porquês e habilitá-los para intervir e melhorar a sociedade de uma forma democrática, responsável e solidária.

Uma das finalidades mais importantes que está na base de conceitos e modelos como o programa integrado é a preocupação de organizar os conteúdos culturais dos currículos de forma significativa, de tal forma que desde o primeiro momento o aluno compreenda o porquê das tarefas escolares em que se envolve.

O fato de se optar por estratégias integradas não significa que as disciplinas desapareçam, nem que deixem de fazer sentido as estruturas conceituais, as seqüências de conceitos e procedimentos nas planificações dos programas. No entanto, uma questão é essa estrutura disciplinar e outra é que na altura de as concretizar em propostas de trabalho para os alunos tem de se seguir essa mesma ordem que caracteriza a estrutura lógica dos conteúdos das disciplinas. Estas estão presentes nas idéias dos professores, mas as propostas curriculares que se conjugam regem-se por outra lógica, a de prestar também atenção à possibilidade ou não de se revelarem importantes e de interesse para os alunos. É necessário dar atenção aos conceitos, estruturas conceptuais e procedimentos que são indispensáveis para prosseguir em direção a maiores níveis de aprofundamento do conhecimento, que permitem enfrentar problemas cada vez mais complexos e avançar para níveis de maior domínio do conhecimento, dando atenção ao significado, relevância e interesse das tarefas escolares na perspectiva do estudante.

No trabalho curricular integrador a estratégia visível, o motor para a aprendizagem está estimulado por um determinado tema, tópico, ou centro de interesse que faz de eixo principal das necessidades individuais com as dimensões mais propedêuticas do sistema educativo, ou seja, com as condições para o acesso a outras etapas superiores do sistema escolar. Desde a preocupação com vertentes humanas, comunitárias, à preocupação com problemas sociais da atualidade e dos desafios da ciência e tecnologia como ajustar a funcionalidade e valor dos conteúdos culturais do programa, das teorias, conceitos, procedimentos e valores que se escolhem para trabalhar nas aulas.

Victor EkpukPor conseguinte, um bom método de ensino integrado é muito mais do que a aplicação de uma determinada metodologia ou uma técnica. Pelo contrário, supõe-se não perder de vista as razões pelas quais se adota esta modalidade de trabalho curricular. Isso explica a preocupação dos professores que optam por esta filosofia pedagógica para criar condições, ambientes em que o aluno se sinta motivado para investigar, questionar e aprender. O desenvolvimento da inteligência, afetividade, sensibilidade, motricidade está condicionado pelas oportunidades de executar, envolver os alunos em questões como a resolução de problemas, planificação, desenvolvimento e avaliação de projetos de trabalho, estudo de casos sobre questões de conflito ou críticas, etc.

Currículo Sem FronteirasNum outro trabalho “Sem muros na sala de aula: o currículo integrado”, Jurjo defende que o currículo integrado implica uma proposta de trabalho coerente, tanto para os alunos e alunas, como para a classe docente o que implica um debate claro em torno dos objetivos, daquilo que se planifica, assim como a discussão de um conjunto de alternativas. Mais, entende ainda o currículo integrado como uma forma dos cidadãos e cidadãs aprenderem a mover-se em estruturas flexíveis, numa sociedade onde a palavra flexibilidade foi convertida num vocábulo mágico. A questão que lhe colocamos é a seguinte: Como explica a existência de condições para uma discussão ampla e justa em torno dos objetivos educativos, em geral, e curriculares, em particular, sobretudo numa altura em que as políticas sociais neoliberais têm vindo a fragilizar, progressiva e acentuadamente, tanto o papel dos alunos e alunas quanto o da classe docente?

Jurjo Torres Santomé – Obviamente, não é de estranhar que com esse tipo de políticas sociais de fundo, o programa integrado esteja a retroceder. As políticas neoliberais e conservadoras que têm dominado a última década não estão interessadas em propostas pedagógicas baseadas na interdisciplinaridade, pois isso implica que os conteúdos curriculares não possam ser controlados com tanta facilidade. Caso se trabalhe com um programa integrado nas aulas surgem mais facilmente perguntas menos convenientes para as pessoas conservadoras. Pensar na diferença que existe na hora de se falar da reprodução humana como uma lição de biologia ou como ponto fundamental de um projeto de trabalho integrado. No primeiro caso, apenas seriam trabalhadas as noções de biologia, no segundo caso, o aluno teria de determinar, para além dos aspectos puramente fisiológicos, a temática da sexualidade ou seja o prazer das relações humanas, os tipos de sexualidade, as condutas sexuais e as respectivas valorizações sociais, o mercado da sexualidade, a igualdade de gêneros nos comportamentos e inter-relações sociais, a história da sexualidade, o papel das religiões na construção das funções da sexualidade e as diversas modalidades de matrimônio, etc. Ou seja, estaríamos a forrar uma cidadania mais informada e responsável, capaz de pensar de forma autônoma, não aceitando dogmas e imposições autoritárias.

Na Espanha, na nova Lei da Qualidade da Educação em vigor desde 2002, vê-se claramente como desapareceu a aposta na interdisciplinaridade; já não se fala de temas colaterais, a opção tímida que promoveu a lei socialista anterior, regressando-se à linguagem severa das disciplinas. Falar da realidade com um conhecimento disciplinar permite ocultar muito melhor aquelas perspectivas mais conflituosas dessa mesma realidade, permitindo dissimular os interesses políticos, militares, religiosos, econômicos, de gênero, etc., dessas divisões da realidade que apresentamos aos alunos como tema de estudo.

Se os conteúdos das diversas matérias escolares têm de possibilitar ao aluno avaliar outros modos de vida e valores diferentes pelos quais se regem familiares e amigos, tornase óbvio que a não promoção de maiores quotas de interdisciplinaridade e programas transversais é uma forma de dificultar enormemente a educação de uma nova cidadania.

As políticas contemporâneas dos países, como é o caso a Espanha, têm nos governos partidos conservadores que defendem modelos econômicos neoliberais. Outro rasgo distintivo subjacente é a notícia da participação em todas as esferas da sociedade e, portanto, no âmbito da educação. Assim, por exemplo, os conteúdos obrigatórios, o programa nacional, é legislado sem antes se promover qualquer debate social acerca da sua conformidade, oportunidade e validade. É o governo que de um dia para o outro, decide publicar um decreto com uma lista de conteúdos para o ensino obrigatório, mas sem explicar porque faz este tipo de seleção da cultura. Uma série de burocratas decidem o que é importante e o que acham que não é não incluem nessa lista de temas obrigatórios que o aluno deve estudar. Para além disso, com a nova Lei da Educação é diminuída a participação tanto das famílias como dos alunos e dos professores na vida das escolas. Reforça-se o papel dos diretores das escolas, dotando-os com mais poder de decisão.

Uma vez mais se constata, que quando se diz que nas nossas sociedades estão a perder liberdades, algo que muitos temos vindo a denunciar, não nos estamos a referir a abstrações, mas sim às possibilidades reais que os cidadãos têm de se fazerem ouvir e poder participar nas tomadas de decisões que nos afetam a todos. Contudo, isto não significa que não existam possibilidades de criar formas mais democráticas de gestão e participação nas escolas. As liberdades sempre foram uma conquista e não uma oferta daqueles que governavam. Temos de pensar que existem muitos professores, assim como estudantes e cidadãos que não aceitam este corte de liberdades. Obviamente isto obriga a que não nos esqueçamos das estratégias utilizadas noutros momentos da história para lutar pelos mesmos ideais. Convém estar alerta e ter na memória o passado, pois uma das estratégias às que recorre a direita é o corte das fontes de memória, fazendo-nos crer que só existe o presente e que este é e será sempre assim. Na memória do passado temos armas suficientes e formas de ação para fazer frente aos que tentam impor um único pensamento, aos que se adiantaram para consolidar o fim da história.

Há muitos docentes envolvidos em experiências educativas com muito valor e convém apoiá-los, divulgar os seus trabalhos para fazer ver às gerações de professores mais jovens que existem alternativas.

Desta forma, o aluno tem de aprender que nem todas as coisas que se estudam nas escolas têm de servir para ganhar dinheiro e cargos de poder. Infelizmente, o mercantilismo está a causar grandes estragos entre a juventude, mas não nos esqueçamos que outra das características das últimas décadas é o crescente número de organizações de voluntários, de Organizações não-Governamentais dedicadas a colaborar com os sectores sociais mais desfavorecidos: estas ONG’s são na sua grande maioria constituídas por jovens, por adolescentes que ainda acreditam no valor das utopias e empregam o seu tempo, os seus saberes e inclusivamente põem em perigo as suas vidas para ajudar os outros. Esta juventude encontra-se na sua maioria escolarizada, sendo assim mais fácil mobilizá-la se formos capazes de lhes demonstrar a importância da educação. Estes alunos são aqueles que irão exigir que nas aulas se discutam temas vitais, que se debatam as questões que muitas vezes ocupam as primeiras páginas dos jornais e telejornais. O programa integrado é a estratégia mais adequada para converter as aulas em espaços de vida.

Currículo Sem Fronteiras Você tem uma determinada experiência ao nível da educação pré-escolar. Num outro espaço, você reflete sobre o brinquedo e o jogo como instrumentos de socialização, produção de consciência, transmissão de ideologias. Entendendo a educação como um projeto político [dado que constrói a identidade de um determinado país] e uma vez que os primeiros passos educativos e curriculares se dão ao nível do ensino pré-escolar, por que razão este nível de ensino tem sido tão negligenciado nas agendas políticas?

Jurjo Torres Santomé – Penso que este é um bom exemplo do desmoronar do Estado de Bem Estar que está a criar ideologias neoliberais. É tudo uma questão econômica e para tal é necessário diminuir as hipóteses de intervenção do Estado para compensar minimamente os excessos do mercado. A opção neoliberal do Partido Popular de José Marfa Aznar explica-nos a orientação mercantilista da nova lei de qualidade da educação (LOCE); o que justifica a defesa clara do ensino privado e, como conseqüência, o abandono que se tem vindo a sentir nos últimos anos em relação ao ensino público. A finalidade é converter o Sistema Educativo num mercado, regido apenas pela lei da procura e da oferta; mesmo sabendo que nem todas as pessoas possuem capacidades, informação e recursos econômicos para fazer a seleção de temas sobre educação. É também este governo neoliberal que reduz a oferta da educação infantil, em especial do grupo com idades entre os zero e os três anos. Recuperaram inclusive o nome injusto de Educação Pré-escolar para essa primeira etapa dos zero aos três anos.

Foram as lutas das professoras progressistas, dos sindicatos dos professores e das Associações cívicas dos bairros que conseguiram transformar a Educação Pré-escolar em Educação Infantil; algo que o governo socialista que chegou ao poder em 1982 contribuiu para a legitimação, resultando assim, na Lei da Educação de 1990, a LOGSE, passando o grupo dos zero aos seis anos de idade a ser conhecido por Educação Infantil.

Falar de Educação Pré-escolar é reconhecer que a educação das crianças entre os zero e os seis anos é algo pouco importante; mais relacionado com a guarda das crianças enquanto os pais trabalham. Tanto a designação Pré-escolar como as funções que se estabelecem, dando mais importância à componente assistencial do que à componente educativa, colocam esta etapa fora do sistema educativo e, inclusive, à margem do Ministério da Educação. Na Espanha durante os governos anteriores ao do Partido Socialista, esta etapa dependia de vários ministérios: Ministério da Educação e também do Ministério do Trabalho. Existiam redes de creches promovidas pelo Ministério de Trabalho para facilitar a incorporação de mulheres no mundo do trabalho, uma situação correta mas que não pode ser feita à custa de uma oferta de educação sem qualidade às crianças.

HundertwasserA Educação Infantil como etapa que abarca as idades dos zero aos seis anos, foi uma conquista social que teve início na década dos anos setenta. Todo o conhecimento especializado que se tem vindo a construir até hoje, sobre o desenvolvimento e a aprendizagem infantil têm uma grande importância nestes anos iniciais. É por esta razão que a designação anterior, LOGSE (1990), apoiando-se no que as Neurociências, a Psicologia, a Pedagogia e a Sociologia têm vindo a constatar, propõe como medida política de justiça social, garantir a educação das crianças desde o momento do seu nascimento. Algo que as famílias mais favorecidas já vinham a fazer através de inúmeros programas privados de estimulação precoce e de educação infantil. Qualquer governo minimamente comprometido com políticas de igualdade de oportunidades e de justiça social não pode deixar de dar atenção a esta etapa educativa. Este é um dos marcos que servem para avaliar as políticas educativas e sociais.

A maleabilidade que caracteriza o ser humano nos primeiros anos de vida é o argumento de maior peso na hora de defender a necessidade de uma Educação Infantil de qualidade. Atualmente, a ciência confirma como o desenvolvimento da fala, da cognição, a regulação das emoções, o desenvolvimento psico-motriz, precisam de um ambiente com os estímulos adequados para um bom desenvolvimento. E necessário um projeto educativo em que esteja bem planificada a regularidade de determinadas rotinas, a repetição de determinados exercícios, as variações graduais de determinadas tarefas, a duração e continuidade de determinadas estímulos.

É este tipo de ambiente educativo que vai possibilitar que as crianças, através das interações que estabelecem, das experiências em que participam, vão construindo as suas capacidades, adquirindo conhecimentos que irão mais tarde condicionar outros. A socialização como membro de um grupo cultural de uma comunidade humana requer ajuda, não é algo que venha com os genes.

Um pequeno diagnóstico sobre a Educação Infantil deveria ter em consideração o trabalho que os professores têm vindo a desempenhar nesta etapa. O seu trabalho, claramente educativo faz com que inclusive as tarefas que tradicionalmente assim eram consideradas, passassem a sê-lo graças ao seu esforço e profissionalismo. Refiro-me a tarefas tais como os cuidados e a limpeza corporal, o descanso, o sono e o período de lazer. As tarefas que a uns anos atrás se desenvolviam de uma forma rotineira, mecânica e fria mas que agora se converteram em momentos educativos.

Obviamente, esta etapa educativa também cumpre um trabalho essencial, dado que facilita às mães e aos pais o desempenho das suas carreiras profissionais. No entanto, foi o trabalho dos que têm a responsabilidade de educar durante esta etapa que contribuiu para uma volta nestas funções: as tarefas que há pouco tempo eram as mais idiossincráticas das instituições que acolhiam as crianças durante estas idades. Atualmente as necessidades infantis passaram a ocupar o centro das atenções.

Tenhamos presente, mesmo assim, que o trabalho das Escolas Infantis têm vindo a desenvolver, não começa e termina com o aluno, alcançando cada vez mais as famílias. Um bom exemplo é que cada vez há mais escolas “Escuelas de Madres y Padres” promovidas a partir destes centros escolares. É também desta forma que as famílias vão conhecendo melhor como são as suas crianças, como podem ajudá-los no seu desenvolvimento e, assim, compreender a importância de colaborar e participar nas escolas para melhorar a qualidade da educação. Esta tarefa de formação que se realiza junto das famílias surge e consolida-se mais como uma tarefa educativa, dado que os professores que trabalham nesta etapa possuem uma formação que nunca existiu anteriormente. As famílias foram assim aprendendo cada vez mais a dar valor à Educação Infantil e passaram desta forma a ser mais exigentes com as escolas para onde enviam os seus filhos.

Mas os resultados conseguidos nesta etapa não se ficam por aqui. Recorde-se que é na Educação Infantil onde surge uma das revoluções mais importantes do século XX nas metodologias didáticas. Os centros de interesse, os métodos globalizados, o trabalho com projetos e as unidades didáticas são estratégias para adaptar o que se pretende ensinar em função das características de cada criança, têm a sua origem na etapa Infantil, mas muito cedo este tipo de inovação vai-se adotando também noutras etapas, principalmente na Escola Primária, embora também na Escola Secundária, em especial quando os professores estão preocupados em estimular os seus alunos com matérias relevantes e significativas

Uma simples observação do Sistema Educativo tenderia irremediavelmente para valorizar este proveito e, assim, promover e reforçar cada vez mais esta etapa educativa, o que representa o inverso do que agora se pretende com a LOCE (2002), que implica retroceder muitas décadas, quase até ao século XIX, quando surgiram as creches. Nessa altura eram as necessidades dos processos de industrialização em curso as que levaram à criação de creches que cuidavam das crianças durante as horas em que os adultos estavam a trabalhar. As indústrias em crescimento necessitavam muito de mão de obra, como tal, se se pretendia que as mulheres trabalhassem fora de casa era imprescindível criar alguma instituição para cuidar das crianças.

Uma prova da regressão na concepção educativa para esta etapa dos zero aos três foram as declarações recentes do Ministro Espanhol do Trabalho, Eduardo Zaplana, quando anunciou como promessa para o próximo exercício a garantia da criação de 400 mil novas creches, situadas o mais perto possível dos centros de trabalho e, se possível, dentro das próprias empresas. Um planejamento semelhante, recorrendo à denominação de creches, mostra que a única coisa que se pretende é a existência de espaços para guardar, cuidar e vigiar. O mercantilismo dominante afasta as funções educativas e origina um forte ataque aos Direitos da Criança.

Qualquer Governo com um mínimo de preocupações pela infância teria que considerar um plano para expandir a educação nesta etapa e, inclusivamente, torná-la gratuita, especialmente se pretendesse que os grupos sociais mais desfavorecidos se preocupem pela educação dos seus filhos. Recordemos que sempre que se deu atenção a estes grupos uma das medidas a que tradicionalmente se recorria era a programas de Educação Compensatória dirigidos aos meninos destas idades.

A Educação Infantil deve continuar a ser uma etapa educativa, o que não obsta que ao mesmo tempo desempenhe, embora de forma secundária, outras funções sociais, como a de facilitar o trabalho das mulheres e dos homens fora de casa e ser também uma instituição que sirva para contribuir na reorganização dos bairros, povos e aldeias em que se habita. Cada vez são mais as escolas infantis que desenvolvem projetos educativos em que estão envolvidas não só as famílias, mas também outras instâncias sociais, como as associações vizinhas, as lojas e negócios comerciais à sua volta, instituições como a polícia local, os bombeiros, etc. Quando a escola trabalha desta forma, transforma-se numa instância de reorganização comunitária, visto que nos torna conscientes de quão interdependentes somos e que todos devemos ser. Ao mesmo tempo em que se contribui para facilitar a socialização das crianças, faz-se com que os adultos, se tomem conscientes dos laços que nos unem.

Apresentar esta etapa como etapa principalmente assistencial significa deixar a perder todo o trabalho realizado até agora pelas escolas infantis que estão comprometidas com uma filosofia e uma política claramente educativas.

Falar de educação Infantil é falar dos Direitos da Criança, falar de educação pré-escolar é falar apenas a partir do direito das mulheres ao trabalho. As mulheres têm que dispor de boas condições para exercer os seus direitos como cidadãs e trabalhadoras, não devendo por esse fato condicionar a qualidade da educação a que têm direito às crianças dos zero aos seis anos.

Destacar esta etapa como pré-escolar é algo muito bem visto pelo Governo neoliberal de José Maria Aznar, pois deste modo pode reduzir ainda mais o seu investimento no mundo da educação, para, entre outras coisas, poder investir mais em armas de destruição massiva, juntar-se às aventuras bélicas imperiais de George Bush.

Currículo Sem FronteirasNo seu trabalho “O Currículo Oculto” você efetua uma excelente análise em torno do conceito gramsciano de hegemonia dissecando o modo como determinadas ideologias se conseguem impor porque garantem um determinado consenso através do consentimento das classes que se encontram arredadas do controle do poder. Boaventura Sousa Santos na sua obra “A crítica da razão indolente; contra o desperdício da experiência” contesta a noção de consensualidade inerente ao fenômeno hegemônico e avança com o conceito de resignação, o que de modo algum colide na sua análise com a noção de agência humana. Dado o momento atual, onde as políticas sociais conservadoras têm deixado um rasto de multiplicação da miséria e de segregação econômica e cultural gritante estaremos a viver um momento de resignação ou, pelo contrário, mantém que assistimos a uma estratégia de geração de consenso?

Jurjo Torres Santomé – Na minha perspectiva penso que ambas as coisas podem compatibilizar-se como explicação. As escolas, em conjunto com os meios de comunicação de massa estão a desempenhar um papel importante na construção do consenso. Ao censurar montanhas de informação e só apresentar e insistir com teimosia em determinados discursos explicativos e justificativos da realidade, conseguem que muitas pessoas acreditem nessa explicação e acomodem a ela os seus comportamentos e expectativas vitais. No meu livro “Educación en tiempos de rico liberalismo” (2001) dedico um capítulo inteiro ao que dou o nome de o processo de naturalização das condutas individuais recorrendo a explicações inatas. Os discursos hegemônicos neste momento histórico em que os meios de comunicação cada vez são menos independentes, dado que as grandes empresas têm consciência da sua importância e, por isso, se apropriaram deles, jogam um papel muito importante na construção do consenso especialmente na medida que empregam grandes esforços a “naturalizar” as situações de injustiça. Assim, quando se fala do fracasso do êxito escolar, de problemas disciplinares nas aulas, do que conhece ou desconhece o aluno, a unidade de análise costuma ser a pessoa individualmente considerada e o discurso utilizado também tratará de deixar clara exclusivamente as responsabilidades pessoais. O êxito e as possibilidades de promoção são vistas como atos de competitividade entre pessoas que mediante o esforço individual e as suas capacidades naturais inatas, conseguem méritos com os quais podem competir e concorrer ao acesso a privilégios sociais de forma igualmente individual.Laxeiro

Em geral, podemos dizer que recuperam valor as posições teóricas e políticas que defendem a primazia das eleições pessoais e da mobilidade social individual, não considerando as condições estruturais que levam ao fracasso social e logicamente, escolar, aos grupos sociais mais afastados do poder.

Desde as instâncias oficiais, não se promoveram análises que tenham em consideração mais perspectivas e interesses sociais comunitários. A sociedade vê-se como reificada, com uma roupagem de despolitização e neutralidade, não dá atenção aos problemas de desigualdade política, econômica e social de caráter estrutural.

Logicamente, o atual marco econômico, político, cultural e social dominado pelas políticas de mercado e de fragmentação social precisa de discursos que confluam na construção da conformação do consenso da cidadania sobre a inevitabilidade das concepções dominantes.

As teorias acerca do individualismo serão um dos pretextos mais recorrentes para manter e justificar o atual estado das coisas, o mundo em que vivemos.

Se as pessoas se sentem sós e pensam ser as únicas responsáveis pelo seu destino, sem que as estruturas sociais, a distribuição dos recursos e o poder condicionem as suas escolhas, a sua vida como indivíduos, torna-se muito fácil cair na resignação. A resignação, no meu ponto de vista, é a ausência de alternativas, inclusivamente incapacidade sobre a possibilidade de as imaginar. Imaginem, por exemplo, o papel que desempenham as teorias do fim da história desenvolvidas por Francis Fukuyama. Estamos diante de discursos com os quais se pretende construir um tipo de pessoas que aceitem como inevitável as suas realidades: pessoas que normalmente são limitadas nas suas aspirações pessoais, ao assumir que o melhor é “deixar-me estar como estou”, pois como diriam algumas das leis de Murphy que circulam entre as pessoas, “tudo o que pode piorar acabará por acontecer”.

Com linhas de discurso semelhantes às de Fukuyama, pretende-se que as pessoas não cheguem a pensar nas enormes disfunções que as atuais formas de economia capitalista neoliberal estão a provocar, nem se procurem imaginar outras alternativas. Não será de estranhar que desde os círculos do poder e meios de comunicação com que são bombardeados os cidadãos, se consiga desvirtuar também os discursos sobre o significado e formas de democracia e se discuta sobre os Direitos Humanos como algo abstrato, sem qualquer ligação à vida quotidiana de cada ser humano ou de cada povo. É desta forma que quem ocupa postos de responsabilidade na defesa do poder estabelecido trava a conflito das crises nos mercados, procura convencer a população de que o desemprego originado pelo capitalismo atual, as injustiças e a pobreza deste momento histórico são coisas normais, no entanto, passageiras que se atravessam num caminho futuro de grande prosperidade.

É curioso como, entre as teorias preferidas pelas opções mais conservadoras e fundamentalistas, que de uma maneira insistente aparecem e reaparecem ao longo do século XX, deve-se distinguir as que vão ligar os comportamentos a condicionamentos biológicos das pessoas, a sua estrutura genética, à conformidade dos seus cérebros ou a níveis hormonais. Caso se consiga convencer cada pessoa que o seu destino social está programado no seu código genético, a partir desse momento não terá outra saída senão “suportar” o mundo, não se lembrará de lutar para que se transforme, pois como se pode lutar contra o que está decidido no código genético. Um pensamento idêntico leva-nos a pensar em imagens de épocas anteriores quando o ser humano era uma marionete das divindades que lhe negavam a liberdade para poder decidir e participar na construção do mundo. Penso que é urgente lutar contra este pessimismo e que são muitas as pessoas que ambicionam fazê-lo. Estou convencido que se nos dedicarmos a salientar as possibilidades a que temos acesso na atualidade para melhorar o estado das coisas, a pôr diante dos olhos dos nossos alunos exemplos positivos de como muitos grupos sociais lutaram com êxito pelos seus direitos, como conseguiram melhorar as suas condições de vida coletiva, estaremos a educar pessoas com confiança no futuro e não pessoas resignadas.

A cultura da comunidade foi promovida por pessoas que se sentiam mais perto das restantes, mas que estavam, sobretudo, convencidas de que era possível alterar o rumo da história: existiam projetos de sociedade que eram vistos como viáveis se atuassem em coordenação com os restantes vizinhos. Nestes momentos, o pensamento neoliberal esforça-se por abrir caminho a esses ideais de transformação, tentando convencer as pessoas de que já não é possível idealizar outro tipo de sociedade. A esquerda política desanimou-se devido aos fracassos dos modelos comunistas e, na atualidade, a direita é mais conservadora, especialmente na mão dos movimentos religiosos mais fundamentalistas, que estão a tentar realizar projetos comunitários em grupos que não teriam outra saída senão a resignação. De qualquer forma, é tal o nível de frustração que as formas de organização do trabalho capitalista originam em cada vez mais camadas da população que voltam a observar-se sérias intenções de resposta da esquerda. Movimentos sociais populares como o “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” (MST) no Brasil, dos grupos anti-globalização, ecologistas, feministas, etc., é importante dar-lhes cada vez mais visibilidade para provar que nem tudo está perdido. Quiçá, já possamos começar a afirmar que começa a dar-se uma transformação no significado de comunidade, não a sua eliminação: surgem novos tipos de associação diferentes das mais tradicionais: partidos políticos e sindicatos. No entanto, pode ser que estes novos tipos de associação cheguem a ser política e socialmente mais eficazes, que facilitem uma melhor coesão social que as anteriores, cujas estruturas, fortemente burocratizadas e profissionalizadas, não ajudam os cidadãos a vê-las como parte de um projeto que diga respeito a todos os membros da sociedade.

Currículo Sem Fronteiras No seu livro “Globalização e interdisciplinaridade”, você, entre outras questões, salienta a necessidade de um currículo globalizado, com integração das áreas do conhecimento, não fragmentado em disciplinas estanques, compatível com a realidade. Na verdade, isto, em essência, não é uma posição muito diferente da que foi colocada em prática por Dewey, na sua Escola Laboratório em Chicago. Gostaríamos aqui de colocar duas questões. Em primeiro lugar, como transformar a globalização por via da educação, em geral, e do currículo, em particular, num fenômeno de plena justiça e equidade social. Em segundo lugar, por que razão, muitos educadores e demais curriculistas [mesmo situados na esquerda política] persistem em negligenciar nas suas análises o pensamento de Dewey? Será por ter sido um personagem controverso politicamente?

Jurjo Torres Santomé – Quando utilizo o termo globalização neste livro faço-o num sentido diferente daquele que a palavra tem na atualidade. Na Espanha o termo globalização, aparece, curiosamente, pela primeira vez no mundo da educação, como uma metodologia didática coerente com o modo em que a psicologia evolutiva nos indicava que se fomenta o desenvolvimento e a aprendizagem humana. Foi uma metodologia muito divulgada na década de setenta, apoiando-se num primeiro momento nas investigações da psicologia da Gestalt e, posteriormente, na criação da psicologia genética da escola de Piaget. É uma perspectiva em que o centro do discurso justificativo se situa na pessoa, individualmente considerada. A questão fundamental é: como é que as pessoas compreendem a realidade e como aprendem? A psicologia de Piaget e, em concreto, as investigações de Ausubel sobre a aprendizagem significativa, junto com os trabalhos de Ovide Decroly e a sua metodologia dos centros de interesse, são os motores de arranque, desenvolvimento e inovação curricular que denominávamos como “globalização”. Nesse livro, argumento que o programa integrado se justifica de um modo muito contundente recorrendo a três grandes linhas de argumentação: 1) o discurso da globalização (ou a melhor forma de promover a aprendizagem individual), 2) o da interdisciplinaridade e 3) da mundialização. Estes dois últimos discursos centram a nossa atenção, por um lado, nas perversidades que se produzem quando se intervém na realidade de um modo disciplinar, como comentei anteriormente, e, por outro lado, a necessidade de alargar os nossos horizontes a realidades mais distantes quando se contemplam os resultados das nossa ações. Esta última linha discursiva é a que hoje em dia se tem vindo a denominar de “globalização” ou em terminologia mais francófona, “mundialização”. Em concreto, no livro sobre o Programa Integrado, servi-me da palavra mundialização, pois no meu país naqueles anos no âmbito da educação o conceito globalização era usado como metodologia para trabalhar nas aulas. De fato, a LOGSE, a lei da educação que acaba de ser abolida, especificava claramente que as metodologias com que devia trabalhar nas aulas de Educação Infantil deviam ser “globalizadas”. Imagina que tem sido muito falado um livro que escrevi no início dos anos noventa, mas, no entanto, há mais de década que se publicavam trabalhos sobre essa metodologia didática mais integrada.

Cada vez estou mais convicto da urgência de avançar para teorias mais integradas se realmente queremos educar e facilitar o acesso reflexivo à informação dos alunos. Um compromisso com a justiça no âmbito educativo obriga a termos presente a possibilidade de se incorrer continuamente numa enorme injustiça curricular, dado que é muito provável que tanto os conteúdos dos programas escolares como as tarefas de cultivar o aluno para que aprenda estejam mais relacionados aos interesses dos grupos sociais mais favorecidos. Quando alguns grupos sociais observam que as suas propostas são mais consideradas nas aulas que outras, isso significa que com os mais desatentos estamos a criar situações de injustiça curricular. Estas situações injustas são mais agravadas dado que as crianças pertencentes a grupos sociais mais desfavorecidos costumam aprender em escolas mal dotadas, sem bibliotecas, sem laboratórios, com poucos professores; escolas que também têm falta de profissionais para ajudar: orientadores educacionais, assistentes sociais, bibliotecários, professores de apoio, etc. Uma escola mal dotada é um sinal claro de injustiça curricular e social.

Luis SeoaneMas, voltando a centrar-me apenas na tua pergunta, existe um fenômeno que penso deve merecer uma atenção muito especial, o da mundialização ou globalização sociopolítica. Obviamente, a globalização neoliberal que se promove em todo o mundo é algo verdadeiramente perverso, porque só favorece as grandes empresas multinacionais a fazer negócios ainda mais rentáveis, sob a ameaça aos Estados de encerrar empresas para as ir abrir noutros países que ofereçam condições mais vantajosas, ou seja, a Estados com sindicatos muito fracos, inclusive a países sem democracia e sindicatos, como tal, com trabalhadores sem qualquer proteção e forçados a trabalhar em situações de semiescravidão ou escravidão total. É necessário fazer frente a este tipo de globalização recorrendo a movimentos sociais, à globalização dos direitos de cidadania. Penso que as instituições escolares desempenham um papel fundamental na tentativa de se conseguir estes direitos humanos em nível mundial. A escola deve ser um espaço onde aprendemos a ver-nos como seres humanos interdependentes, como pessoas que cada vez que tomamos alguma decisão saibamos que teremos de ter em consideração quais as repercussões em temas que estão mais afastados de nós. A criação de uma mentalidade solidária em nível mundial tem de ser um objetivo de trabalho de todos os professores. Uma mentalidade semelhante obrigaria a cada cidadão pensar de uma forma mais internacional, ou seja, por exemplo, quando compramos uma camisa numa loja não só olhamos para o preço dessa peça de roupa, se é barata, mas também prestamos atenção a: onde é fabricada?, em que condições estão as pessoas que a fabricaram?, existem crianças a trabalhar nessas empresas?, os salários desses trabalhadores são justos?, as matérias primas foram obtidas e pagas de uma forma justa?, etc. Uma “escola globalizada” é também aquela em que o aluno mantém uma comunicação fluida com outras instituições escolares mais afastadas, em que se informa dos problemas dessas crianças e, inclusive, tenta arranjar formas para tentar ajudar a resolver esses problemas.

Se para a manutenção de qualquer democracia é necessário existir uma cidadania educada e informada, a luta por um mundo global mais democrático e justo precisa dessa cidadania, mas com uma consciência claramente planetária, acostumada a ter uma visão solidária e responsável para lá dos limites do seu bairro, cidade ou país. A nossa escola tem uma grande tarefa a planear, a colaboração na mundialização da visão, mas mais urgente é a preocupação com a pobreza, as necessidades e as injustiças. A preocupação com as realidades internacionais mais inúteis e classicistas, é algo que infelizmente muitos grupos têm vindo a promover, em especial, os meios de comunicação em massa. Não devemos permitir que a globalização apenas ocorra com os anúncios da Coca-Cola, com os restaurantes da MacDonald’s ou da Pizza Hut, devemos trabalhar no sentido de tornar visível as grandes urgências de muitos países, as enormes injustiças suportadas por inúmeros povos e, conseqüentemente, mobilizar a cidadania para a criação de estratégias para solucionar estes problemas. O ensino da matemática, da história, da literatura, das ciências, da língua, … A matemática tem de servir para que as novas gerações aprendam  a medir e quantificar as injustiças suportadas por muitos milhões de crianças; as aulas de história devem contribuir para explicar como se geraram noutros momentos de história conflitos que atualmente ainda continuam por se resolver; a literatura tem de servir para que as crianças possam entrar em contato com outras idéias mais afastadas, com realidades, sonhos e aspirações que são narradas por pessoas que vivem fisicamente mais afastadas de nós e, além disso, para que se expressem através de uma linguagem muito rica e elaborada e noutros idiomas não hegemônicos, mas que são utilizados por muitas pessoas.

Ao que me é dado a entender sobre o esquecimento de John Dewey, penso que se deve fundamentalmente ao fato de vivermos numa sociedade majoritariamente consumista que considera “fora de moda” e que já não vale a pena tudo o que não se produziu ou escreveu nestes últimos dois meses. Estou convencido de que uma imensa maioria de pessoas que trabalho na área da educação nunca sequer leram um livro escrito por Dewey. Parece-me uma grande injustiça, pois acredito que é dos poucos autores do século XX que deveriam ser considerados de leitura obrigatória. Preocupa-me o esquecimento enorme de obras que continuam a ter uma importância fundamental e que poderiam servir para abrir novos horizontes neste mundo que alguns consideram não ter futuro. Surpreende-me de forma dolorosa ver que a maioria dos estudantes que fazem doutoramento ou inclusive professores no ativo que desconhecem a obra de autores como Celestin Freinet, Giner de los Rios, Mario Lodi, Condorcet, Emile Durkheim e a pedagogia institucional francesa, etc. Não acredito que na maioria dos casos seja devido a censuras explícitas por parte dos professores que estão a formar as novas gerações de professores, mas sim ao fato de nesta sociedade consumista termos a tendência a ver apenas o último livro que acabou de ser publicado e a considerar como defasado tudo o que foi publicado no ano anterior. Isto é um enorme erro ao qual temos de fazer frente.

Currículo Sem FronteirasNo seu mais recente trabalho “Educação em tempos de neoliberalismo”, você desafia o pensamento único, defende a recuperação da utopia como um dos motores da transformação social, opõe-se à lógica de que não existem alternativas à “cruzada” neo-liberal e denuncia [tal como Gimeno] o mercado como uma metáfora inadequada para a educação. Se houve oratória e prática política que mais tumultos criou no tecido educativo foi, sem sombra de dúvida, o neoliberalismo. Trazendo mais uma vez Dewey à colação, quais os grandes desafios que enfrentam agora os educadores perante o cerco cada vez mais apertado das políticas neoliberais?

Jurjo Torres Santomé – Penso que o maior perigo tem a ver com a destruição do Estado de Bem-estar e em concreto do Ensino Público. A educação para os governos conservadores e grupos neoliberais já não é considerada como um serviço público, mas sim como ume rede de centros que são colocados à disposição das famílias de forma a escolher para onde vão estudar as crianças. Por sua vez, as famílias observam atentamente os colégios como um local onde os seus filhos aprendem algo que servirá amanhã para terem um salário e prestígio social. A filosofia de mercado está a apoderar-se do pensamento, das práticas e das instituições escolares. Os compromissos principais que vinham orientando o pensamento e as diretrizes dos que trabalharam para e nas escolas públicas, estão a ser esquecidos no que diz respeito aos processos de privatização que afetam a educação. Vejamos, a título de exemplo, no difícil momento que nos encontramos em centros escolares organizados com base em argumentos que, até recentemente, serviam para organizar o trabalho educativo, tal como: a igualdade de oportunidades, a educação centrada no aluno, a integração das pessoas menos capacitadas, o anti-racismo, o anti-sexismo, o anticlassicismo, a democratização dos centros, a escola ao serviço da comunidade, o multiculturalismo, a educação crítica, a educação compreensiva… Discursos e opiniões sobre a educação que atualmente estão sendo atacados frontalmente por parte dos defensores do mercado e das ideologias conservadoras, se bem que é de ressalvar que ainda existe um grande número de professores que continuam a ter estes objetivos ou semelhantes como motor das suas vidas.

Ao admitir-se a comparação dos colégios com as empresas teremos de admitir também que a procura de benefícios econômicos privados é um dos seus principais objetivos. No entanto, convém não esquecer que, enquanto os negócios privados tentam conseguir lucros para os seus proprietários e acionistas, as instituições públicas regem-se pela procura e ganhos de bens públicos, de prestações destinadas a toda a população, dando maior atenção aos que mais dela precisam.

É conveniente comprovar se a possibilidade de se obterem benefícios econômicos por parte da iniciativa privada podem levar a perdas sociais; em determinadas circunstancias é provável que a obtenção de lucros se dê à custa de interesses sociais. Um exemplo destas perdas sociais é o caso das empresas poluentes que para obterem maiores benefícios econômicos não têm quaisquer problemas em gerar maior poluição atmosférica ou marítima, de destruir determinadas áreas naturais ou explorar determinados minerais e plantas. No caso em questão, as perdas sociais são resultado da potenciação de uma rede de centros privados que continuam a favorecer a desorganização social; conseguindo que determinados grupos sociais menos favorecidos acabem por ficar limitados a escolas públicas tipo “apartheid”.

Não nos passará despercebido que defende uma economia de mercado neoliberal não se questiona sobre se são necessários alguns limites. Que não torne mais clara a diferença entre bens públicos e privados. Os bens privados, como o próprio nome indica são aqueles que são adquiridos e desfrutados pelas pessoas individualmente e que não afetam as restantes pessoas; o que acontece, por exemplo, com a aquisição de uma mesa ou de uma guitarra. Por oposição, os bens públicos são aqueles a que todas as pessoas têm acesso e que podem ser desfrutados por todos. Assim, a saúde é algo a que todos devem ter acesso, ao mesmo nível da educação, ou viver num meio ambiente sem poluição, visto que a saúde, a cultura ou uma boa qualidade do ar que respiramos, a água, as plantas e os minerais, contribuem de forma decisiva à conservação da vida no planeta. Limitando-nos mais à área da educação, considerada como um bem público significa um compromisso para com o desenvolvimento de todos os seres humanos, não sendo exclusivamente para aqueles que só porque nasceram no seio de determinada família têm recursos para ela. Tenhamos presente, para, além disso, que se todas as pessoas tiverem acesso a uma educação, a vida de toda a população será muito melhor, pois todos serão beneficiados com a contribuição dos outros. A violência, no sentido mais alargado da palavra, a mortalidade, as altas taxas de reprodução, as doenças e pragas que geram pobreza, a ignorância e a marginalidade serão obviamente reduzidas, o que será benéfico para toda a sociedade.

No Estado Espanhol, a política educativa neoliberal que vem sendo desenvolvida pelo Partido Popular (PP) tem como um dos principais objetivos, a liberdade de seleção de centros, mas com o sentido de aumentar a privatização do ensino. Um bom exemplo é o livro “La libertad de elección en educación” (1995), publicado por Francisco López Rupérez, Director Geral dos “Centros Educativos del Ministerio de Educación y Cultura” do Governo do Partido Popular (PP); obra editada pela Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales, de que é presidente José Maria Aznar López, o Primeiro Ministro do Governo Espanhol. Nesta publicação, o autor, também ele ideólogo do PP, utiliza os seus esforços na tentativa de convencer as pessoas das vantagens da livre escolha, fazendo com que desapareçam os “clientes cativos” dos centros públicos. Este ideólogo conservador e neoliberal considera que as instituições públicas bem corno os funcionários que nelas trabalham são seres perversos, os quais têm de ser afastados das crianças, dado que segundo ele, estamos perante “um monopólio bilateral formado, por um lado, pelo governo e por outro pelos professores sindicalizados”.

Torna-se chamativa a forma como este autor se esquece de considerar a diferença radical que deve existir no comportamento do governo num regime ditatorial e num regime democrático. No primeiro caso é típica a tirania das decisões e ações, no entanto, numa democracia um comportamento como o que denuncia este Diretor Geral tornar-se-ia inconcebível, seria o maior sintoma da falsidade de uma situação que se denomina democrática. Uma frase como a anteriormente citada deixa transparecer a sua escassíssima fé nos mecanismos democráticos, a par da sua total antipatia com os Sindicatos, uma das instituições fundamentais das sociedades democráticas.Vasily Kandinsky

Quando o Estado se retira ou não intervém, equivale a deixar desprotegidos os grupos mais fracos. Estas crianças são as que estudam nos colégios piores, e com professores abandonados à sua sorte, sem ajuda para resolver os problemas que surjam. Eu estou habituado a dizer e é algo que desenvolvo neste livro a que fazem referência, “Educación en tiempos de Neoliberalismo”, que as escolas não podem ser clubes. As primeiras dizem respeito aos interesses de toda a cidadania, ao bem público, os clubes, pelo contrário, só se preocupam com os seus sócios. Penso que este é o grande desafio dos próximos anos: impedir que as escolas se transformem em clubes privados.

A privatização começa pela privatização das instalações, mas continua com a privatização dos conteúdos que se trabalham nas aulas. Se só preocupam os interesses privados dos alunos de cada clube, é previsível pensar que também se acabe por oferecer somente aquelas assinaturas [disciplinas] que interessem a esse grupo de famílias “proprietárias” do clube e, por hipótese, somente às perspectivas ideológicas que elas defendem. É a forma de construir sociedades dualizadas, fragmentadas, em que cada coletivo social vê os outros como rivais ou perigosos para iludir e eliminar.

A educação do futuro, tal como chamou a atenção a comissão presidida por Jacques Delors, tem entre os seus desafios trabalhar para que nas aulas as novas gerações aprendam a viver em comunidade. O neoliberalismo caminha na direção oposta.

Currículo sem FronteirasVocê não esconde, de forma alguma, a sua identidade galega. Tem inclusivamente vinculado a sua posição política, de uma forma muito explícita, à causa galega, como demonstra o Manifesto 15D, emitido em Santiago de Compostela a 15 de Dezembro de 2001. Pode-nos explicar qual o grande propósito político do Movimento Reintegracionista Galego?

Jurjo Torres Santomé – Considero-me um nacionalista galego de esquerda. Algo que nos tempos de conservadorismo que correm pode ser considerado chocante, pelo menos para as pessoas que não vivem no que nós denominamos “uma nação sem Estado”. A Galícia é uma província dentro do Estado Espanhol que fruto das lutas sociais que têm sido levadas a cabo desde os finais do século XIX foi atingindo níveis importantes de autonomia, mas presentemente são insuficientes e daí que neste momento em províncias como o País Basco, Catalunha e Galícia se estão a exigir uma maior dimensão nos Estatutos de Autonomia que nos governam.

A finalidade do Manifesto do 15 de Dezembro de 2001, divulgado em Santiago de Compostela, era de protestar pela política lingüística que tem vindo a ser promovida pelo Governo galego, do Partido Popular, do mesmo partido que Governa o Estado Espanhol. Na Galícia a língua que falamos é o galego, também o espanhol, mas a língua própria, é o galego. Esta língua é uma variante do português, mas a política oficial, num primeiro momento tratou de a proibir. De fato durante a minha infância na escola castigavam-nos se falávamos em galego. Era a língua da incultura, diziam, e proibiam-nos de falar e, claro, estudar. Com a chegada da democracia e, em concreto, com a aprovação da Constituição Espanhola de 1978, reconheceu-se a Galícia como uma Nacionalidade histórica e o “direito” a falar-se em galego, mas não a “obrigação” de falar em galego. A política conservadora desde esse momento já não se opôs “oficialmente” à língua, mudou somente de estratégia: tentar dialetizar a língua galega, até se transformar numa variante do espanhol. Por ter sido tanto tempo proibida, a língua galega conservou-se fundamentalmente graças aos grupos mais populares, os que nunca tinham estudado ou tinham estudado pouco tempo. A língua ao ser estudada foi-se misturando com vocabulário e até com determinadas estruturas gramaticais próprias do espanhol. A estratégia de dialetização passava por legitimar essas influências e inclusivamente promover outras novas, até a língua galega ficar descaracterizada, confundindo-se com o espanhol. O movimento nacionalista apostou no reintegracionismo e a nossa estratégia e o nosso trabalho é recuperar a língua e devolvê-la ao início, o galego-português. É algo óbvio para qualquer Português, Brasileiro ou Galego, que vê como se entendem e utilizam o mesmo vocabulário.

Ser nacionalista de esquerda não é sinônimo de um reacionário e muito menos uma pessoa que quer abrir novas frentes para separar e expulsar aos não galegos.

Esta é a imagem que a direita e alguma esquerda estatal estão a divulgar para confundir a população e refrear o avanço do nacionalismo progressista. Nunca o nacionalismo galego falou de expulsão, mas sim de integração. Principalmente quando somos um dos povos do mundo que sofreu com mais crueldade o fenômeno da emigração. Nunca desde o nacionalismo se falou de refrear a chegada de imigrantes, algo que tanto o Partido Popular como o Partido Socialista Trabalhista Espanhol falam e legislam. Na realidade essa política de exclusão nacionalista é a que eles praticam, só que o que fazem é traçar outras fronteiras. Todos os dias as fronteiras espanholas expulsam centenas de cidadãos por não terem nascido na Espanha. Os nacionalistas galegos estão contra as leis de estrangeiros aprovadas no Parlamento Espanhol e contra elas votaram os Deputados do Bloco Nacionalista Galego.

O movimento nacionalista de esquerda pretende que a Galícia amplie o seu Estatuto de Autonomia para poder desenvolver as suas potencialidades econômicas, culturais e sociais, mas tendo ciente que a internacionalização e o universalismo são as chaves que devem impregnar e construir todas as nossas ações. Aquilo que nós sempre afirmamos é que o galego é todo o indivíduo que vive na Galícia e o que pretendemos é aproximar muito mais a cidadania às possibilidades de participar ativamente no projeto do que deve ser esta nação. De fato, uma das idéias que guiam os grupos nacionalistas é caminhar para uma Europa dos Povos, não dos Estados, pois acreditamos que desta forma cada uma das Nações que a compõem terão mais possibilidades de participar e agrupar. É a forma que considero para harmonizar uma Europa verdadeiramente democrática, sem “colônias interiores”, sem povos inteiros marginalizados.

Notas

1  Chumbar é uma expressão utilizada em Portugal para significar reprovação na escola. O mesmo que “tomar bomba” ou “rodar” no Brasil. [Nota dos editores]

David Hockney

.David Hockney – «Autumn Leaves«

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