Sobre a necessidade urgente de repolitizar a educação escolar (*)
Jurjo Torres Santomé
Universidade da Corunha (UDC), Espanha
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Vivemos há tantos anos em sociedades capitalistas, que tantas vezes se mostram patriarcais, classistas e racistas, que a maior parte das pessoas tem por adquirido que o único objetivo da vida é ser rico, ter mais e mais… uma perpétua luta obsessiva para «ser o melhor». Uma expressão que parece trazer subentendido que os restantes devem fracassar, ficar para trás, pelo que será até desaconselhável colaborar com eles.
Há muitas décadas que a maioria dos governos e dos grandes poderes económicos, políticos e culturais vêm criando leis e insticuições com as quais esperam ganhar competitividade nos mercados nacionais e internacionais. E nesse contexto torna-se imprescindível educar cidadãos com conhecimentos e capacidades úteis ao mercado, fomentar uma personalidade mercantil interessada em colocar ao serviço do mercado o seu pertinente capital cognitivo e competir pelas melhores posições e pelos melhores salários. Com sucesso e dinheiro no bolso, é então a hora de reforçar uma personalidade consumista, que a todo o custo procura destacar-se dos outros, ostentando bens e gerando inveja em todos os que a rodeiam.
Trata-se de um modelo económico, político e social sustentado por explicações e cosmovisões que se apresentam numa palavra: «progresso». Esta conceção da vida em sociedade, adequadamente instrumentalizada para servir as perspetivas mais neoliberais e colonialistas, vem contribuindo para distorcer completamente o significado de outras teorías, conceções e expressões que podem colocar em causa os seus interesses e originar o debate e a procura de visões alternativas.
Com este contexto político e social, o sistema educativo que se concebe, desenha e implementa acaba por ser um dos resultados mais visíveis dessas conceções e cosrnovisões hegemónicas. A eficácia desse desenho e o êxito desse sistema podem ser medidos através dos ideais e dos objetivos que os cicladaãos vão construindo durante a educação escolar e que ganham forma através de capacidades, procedimentos, conteúdos e valores que não questionam as perspetivas dominantes, uma vez que, pelo contrário, contribuem para naturalizar as distorções da realidade e impedir o questionamento da reprodução do sistema. Penso que devemos aproveitar o momento que estamos a viver para repensar o sistema educativo e as instituições educativas que temos vindo a promover.
Se analisarmos os discursos mediáticos e a linguagem utilizada pelas autoridades políticas e profissionais em debates nos mais variados meios de comunicação, bem como pelas pessoas nas redes sociais, durante estes longos meses de pandemia da doença Covid-19, rapidamente verificamos qual é a bagagem educativa e formativa da nossa cidadania. Dito de outro modo, rapidamente se percebe qual é a caixa de ferramentas intelectuais (conteúdos culturais, valores, capacidades, competências, hábitos mentais) que temos vindo a construir nas nossas sociedades. Damo-nos conta da educação e do capital cultural com que temos dotado a cidadania em geral e os diversos grupos sociais em particular.
Estão a ser postas à prova as políticas educativas e os modelos que têm vindo a ser promovidos pelos governos e suas administrações educativas, pelas universidades e escolas de educação nas últimas décadas. Este é o momento em que devemos parar para analisar que educação estamos a promover nas nossas escolas e até que ponto esta contribuí para Educar uma Cidadania, Culta, Informada, Democrática, Justa, Crítica, Virtuosa, Inclusiva, Otimista e Ativa, ou se, pelo contrário, o que está a acontecer é a mera irnplementação de um curriculum oficial, legislado, que na realidade trabalha numa direção oposta, obstaculizando essas finalidades.
É a partir da cidadania com que vivemos que podemos constatar os problemas e as dificuldades com que as pessoas se deparam para compreender a realidade, para avaliar as situações e os contextos em que vivem, que tipo de sociedade estamos a construir e para que futuro nos encaminhamos. A educação a que temos acesso, na escola, deve proporcionar a todos urna caixa de ferramentas culturais a que recorrer para construir explicações e tomar decisões sobre as mais variadas situações. Estas ferramentas culturais, ou seja, a educação cursada, devem permitir compreender o modelo de sociedade em que vivemos, como é o mundo atual e como deve ser o que consideramos desejável.
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As pessoas em geral, tal como qualquer aluno das escolas e faculdades de educaçao, ouvem com frequência conceitos como liberdade, crítica, empoderamento, solidariedade, antirracismo, antissexismo, etc., mas eles esgotam-se no seu pronunciamento. São conceitos poderosos, mas que ficam habitualmente reduzidos a palavras, uma vez que a sua prática nunca se investiga, ou seja, nunca é realmente analisado se tuda aquilo que fazemos é coerente com esses conceitos, se os nossos alunos e alunas caminham com esse horizonte, conscientes dessas metas social e politicamente libertadoras.
A pandemia de Covid-19 está a ser aproveitada por variadíssimos setores políticos, económicos e tecnológicos, em vários países, para criticar as metodologías didáticas da maior parte dos professores, acusando-os de não «saberem» trabalhar com as tecnologías e com software relevante e adequado as novas circunstancias, em vez de, pelo contrário, se reconhecer que a maior parte das escolas não está dotada dessas tecnologías nem dispõe de condições que permitam utilizá-las adequadamente. Tecnologías que sao rotuladas de «educativas» e consideradas a priori como boas e relevantes, mas que na verdade, mais vezes do que desejaríamos, são dispositivos de vigiláncia que se destinam a converter os utilizadores em seres sem liberdade, facilmente manipuláveis por algoritmos secretos. Culpam-se os professores, acusando-os de não estarem empenhados em experiências e inovações curriculares adequadas ao momento atual, de não estarem suficientemente comprometidos com a «inovação», essa palavra mágica!
A expressao «inovação educativa» é normalmente um conceito vazio, ou, pior ainda, ajustável ao gosto de quem o pronuncia, sem que nunca sejam levados em conta e investigados os seus resultados, visíveis e invisíveis, nas aprendizagens dos alunos. Esquece-se que uma qualquer siruação só é verdadeiramen te educativa se acompanhada pela reflexão crítica sobre o que se está fazer, porquê, para quê, de que modo, sobre o que não se sabia antes e o que é preciso saber…, ou seja, é a mo bilizaçãoa do pensamento, a estimulação cognitiva, que convertem uma mera acção em algo educativo. É frequente falarmos em inovação e criatividade, mas sem saber bem como avaliar na prática estes conceitos.
Entre as questões colocadas pelos governos e ministérios da educação ignora-se com frequencia a reflexão sobre que tipo de currículum será o mais adequado para tomar realidade o exercício da cidadania, a participação e a construção de uma sociedade melhor. Particularmente desde que a OCDE colocou as competências na ordem do dia, não existe um mínimo de debate público democrático sobre o que ensinar, o que trabalhar com os alunos na escola, porquê e para quê. O debate sobre as competências silenciou completamente outras exigéncias relacionadas com os conteúdos e com os valores. Contudo, é importante ter presente que aquilo que torna essas cornpetências (relativamente as quais facilmente todos estamos de acordo e que por isso não são controversas na sua formulação) coerentes com as nossas intenções, com as metas e objetivos que pretendemos alcançar, é urna seleção adequada dos conteúdos e recursos informativos que são mais pertinentes em função das especificidades dos alunos que existem em cada escola e em cada turma.
Nestes tempos de despolitização, tecnocracia e especialização é necessário recordar que a pedagogia crítica é uma prática política, ética e social que implica apresentar e promover nas aulas conhecimentos, visões da realidade, da vida comunitária, ideais e aspiraçoes em pral de um mund o mais justo , que abriga a trabalhar nas escolas com conteúdos culturais relevantes para o modelo de sociedade que desejam os construir, que sejam motivadores e significativos para os alunos. É com esta filosofía crítica bem clara que podemos então selecionar estratégias e recursos didáticos informativos, rigorosos e apropriados as várias etapas educativas. Um bom projeto curricular deve servir para nos consciencializar sobre as representações e avaliações que os outros têm sobre nós, sobre a comunidade, sobre os outros e, igualmente, sobre o meio ambiente e a sustentabilidade.
Falar de política pressupõe assumir a necessidade de uma forma de ação coletiva que exige abertura, debate público democrático e inclusivo, já que o outro está envolvido e pode e deve dizer algo interessante, que pode convencer-nos e obrigar-nos a rever e mudar as nossas opiniões, ações, decisões e até mesmo a nossa maneira de sentir… Aprender a ouvir é uma competência que tendemos a negligenciar e que precisamos desenvolver nos professores e nos alunos. O «público» refere-se sempre ao comum. Por isso deve ser acompanhado de condições que pernutam e facilitem o debate público. Trata-se de sublinhar a principal dimensão da democracia, da participação e da justiça social, económica, política, cultural, educacional e, portanto, envolve um compromisso ativo com o princípio da igualdade de oportunidades e direitos, a luta contra a opressão, injustiças e desigualdades.
Deveríamos investir muito mais na busca da «justiça curricular»(1). Este tipo de justiça é o resultado da análise do currículo que se desenha, que é posto em prática, avaliado e investigado, levando em consideração o grau em que tudo o que é decidido e feito em sala de aula é respeitoso e atende às necessidades e emergências de todos os grupos sociais. Até que ponto os ajuda a ver-se, analisar, compreender e julgar-se como pessoas éticas, solidárias, colaborativas e corresponsáveis de um projeto mais amplo de inrervenção sociopolítica que visa a construção de um mundo mais humano, justo, democrático e sustentável.
Nesta luta pela construção de sistemas educativos mais justos, inclusivos e participativos, a obra de Pedro Patacho tem um enorme valor. Este livro, como a sua tese de doutoramento, são textos e pesquisas altamente rigorosos, releantes e pertinentes para o momento atual e, portanto, uma leitura altamente recomendada e urgente para autoridades políticas, profissionais da educação, estudantes universitários em geral (não apenas para quem está nas escolas e faculdades de educação) e, claro, para as famílias. Se temos uma tarefa pendente e muito urgente, é precisamente ajudar a explicar às famílias a importância e o significado de uma educação justa e democrática e, assim, envolvê-las, participando como agente fundamental nas instituições escolares.
Não podemos abrir mão de «politizar» a educação, no sentido mais nobre e original do conceito. A política baseia-se no reconhecimento da enorme variedade de seres humanos. Como nos diz Hanna Arendt: «Política é estarmos juntos, e uns com os outros, todos diversos»(2). Politizar é colocar as pessoas num lugar visível, ver como as medidas políticas, económicas, sanitárias, educacionais, sociais… afetam as pessoas e os diferentes grupos sociais. Não devemos confundir o termo politizar com doutrinação, palavra religiosa que significa viver de acordo com as leis divinas (não humanas), que não podemos e não devemos questionar. A doutrinação envolve a defesa de que estamos diante de dogmas, sabedoria no sentido de verdades objetivas e que não podemos questionar porque nos são comunicadas por divinidades através dos seus mediadores na terra. O propósito dessas doutrinas é guiar os crentes, seus destinatários, nos seus comportamentos e ideais, a fim de ganhar o céu na vida eterna. Doutrinar e também, a partir de um contexto laico, transmitir de forma autoritária. e até coercitiva, informações, ideias, ideais das mãos de autoridades políticas, religiosas, sanitárias, educacionais, … a um determinado grupo social ou à população em geral para que os seus comportamentos sejam apropriados aos olhos de quem doutrina. Em nenhum momento a liberdade de pensamento e a liberdade e autonomia das pessoas são respeitadas. Essas informações, ideias e comportamentos não podem ser objeto de debate ou questionamento crítico por parte dos seus destinatários. Requer confiança e fé cega em quem os gera e os transmite, e o resultado dessa transmissao, podemos dizer, equivale ao que se convencionou chamar de «lavagem cerebral», estratégia antidemocrática para um controlo social mais eficaz e autoritário da população. É através da doutrinação e das técnicas de desinformação e manipulação de informações, notícias falsas, que se reproduzem atitudes, comportamentos de exclusão, hierarquização e naturalização do ódio, de demonização de pessõas e grupos sociais específicos, de reprodução do racismo, sexismo, homofobia, classismo, etnicismo, preconceito para com os mais velhos, etc.
A formação dos cidadãos deve servir para aprender a compreender e lidar com as desigualdades e injustiças que dificultam a visibilidade de todos os grupos sociais, de pessõas que vivem na nossa comunidade, que dificultam a Atenção, a Escuta, o Diálogo, a Participação, a Colaboração, o Apoio Mútuo, o Reconhecimento das pessoas, grupos e coletivos sociais -próximos ou distantes- porque vivemos num mundo globalizado.
Educar é gerar sonhos e otimismo, convictos de que o nosso futuro e o do planeta, está nas nossas maõs, na solidariedade e na cooperação, sempre com a mente e a ação a serviço de quem sofre o pior.
Somos iguais, mas diferentes.
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* “Prefácio” em Pedro Patacho (2021). Pensar a educação. Escola, justiça social e participação. Porto: Porto Editora.
1. Torres Santomé, J. (2011). La justicia curricular. El caballo de Troya de la cultura escolar. Madrid: Ediciones Morara (2.ª Ed.); (2019). Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales yneocolonialistas. Madrid: Ediciones Morata (4.ª Ed.).
2. Arendt, Hanna (2015). La promesa de la política. Barcelona: Austral/Paidós, p. 131.
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Jurjo Torres Santomé
2020
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