Derechos Humanos
Por uma escola inclusiva e democrática
Entrevista com Jurjo Torres Santomé
- Arlindo Fernando Paiva de Carvalho Junior. Instituto Benjamin Constant e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
- Andrea Rosana Fetzner. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Revista e-Curriculum
São Paulo, v. 20, n. 1, jan./mar. 2022, págs. 14-39
e-ISSN: 1809-387
For an inclusive and democratitc school: interview with Jurjo Torres Santomé
Abstract
The interview with Jurjo Torres Santomé was conducted as part of studies about curricular justice and on how such a concept could contribute to inclusive school and pedagogical practices. Situates his trajectory and contributions to the perception of the field of curriculum, as a critical environment for the technical approaches that sometimes predominate in the field of pedagogical practices. The teacher was born in Castro de Rei, Lugo province, Spain, and lives in the city named Coruña. He is married and is father of a young girl. Graduated in pedagogy and psychology, has a master’s and doctorate in education. He is a full professor at the University of Coruña, where he coordinates the research group ‘Educational Innovations’. His books and articles are published in different countries, and among his subjects of study are, teacher training, integrated curriculum, curriculum justice, among others.
Por una escuela inclusiva y democrática: entrevista con Jurjo Torres Santomé
Resumen
La entrevista con Jurjo Torres Santomé fue realizada como parte de los estudios sobre la justicia curricular y sobre cómo tal concepto podría contribuir para prácticas escolares y pedagógicas inclusivas. Sitúa su trayectoria y contribuciones para la percepción del campo del currículo como un ambiente crítico a los enfoques tecnicistas que, por veces, predominan en el área de las prácticas pedagógicas. El profesor nació en Castro de Rei, provincia de Lugo, en España y reside en la ciudad de la Coruña Es casado y padre de una joven, se formó en pedagogía y psicología, posee maestría y doctorado en educación. Es profesor catedrático en la Universidad de la Coruña, donde coordina el grupo de investigación Innovaciones Educativas. Sus libros y artículos están publicados en diferentes países, teniendo entre sus temas de estudio la formación de los profesores, el currículo integrado, la justicia curricular, entre otros.
A presente entrevista é fruto da convivência e dos estudos realizados no laboratório do grupo de pesquisas Inovações Educativas, coordenado pelo professor Jurjo Torres Santomé, na Universidade da Coruña, na Espanha. A entrevista é decorrentedo estágio doutoral (período sanduíche) realizado com a supervisão do referido professor. Tal estágio visava aprofundar os estudos curriculares relacionados à inclusão. Foram seis meses de aprendizado e trocas que culminaram, em março de 2020, na realização da entrevista, que fechou um ciclo de grande amadurecimento e aprofundamento no campo dos estudos curriculares, tendo como ênfase a escola inclusiva e democráticafrente à diversidade.
Jurjo Torres Santomé é um importante pensador no campo educacional e referência nos estudos curriculares. Professor, formado em Pedagogia e Psicologia, com mestrado e doutorado em educação, atualmente, é professor catedrático da Universidade da Coruña, onde coordena o grupo de pesquisa Inovações Educativas. Dentre algumas de suas principais obras publicadas, estão: El curriculum oculto (1991), Globalización e interdisciplinariedad: El curriculum integrado (1994), Educación en tiempos de neoliberalismo (2001), La desmotivación del profesorado (2006), La justicia curricular: El caballo de Troya de la cultura escolar (2010), Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas (2017), além de diversos textos, palestras e entrevistas em comunidades acadêmicas de diferentes países.
O relato ofertado por Torres Santomé é de forte contribuição para a construção de currículos inclusivos, que se relacionam à organização escolar não excludente e não classificatória; além disso, facilita a compreensão do termo “Justiça Curricular”, aqui compreendido como um conceito que caminha de mãos dadas com a organização escolar democrática na defesa de práticas pedagógicas inclusivas, participativas, dignas, éticas e dialógicas. Ademais, a justiça curricular respeita as singularidades dos corpos, dos sujeitos, das culturas, dos grupos sociais, ao mesmo tempo em que dá voz, visibilidade e representatividade a todos os integrantes das comunidades escolares com suas distintas realidades e regionalidades, aspectos constituintes de todos nós, seres humanos complexos, sócio-históricos, únicos em suas características, desejos, anseios, medos e experiências, nas mais diversas dimensões, contextos e cotidianos da vida, em um processo e período de tempo histórico e contínuo
ENTREVISTA COM JURJO TORRES SANTOMÉ
Entrevistadores: Professor, quando o senhor iniciou os seus estudos curriculares e a sua trajetória no Ensino Superior?
Jurjo Torres Santomé: Minha trajetória acadêmica tem múltiplas influências. Quando eu concluí os estudos de Ensino Médio e ingressei na universidade, vivíamos os últimos anos da ditadura franquista[i]. A minha família me pressionava, queria que eu cursasse o Ensino Superior, porém me chamava mais atenção o mundo das artes. Diante desse dilema, optei pelas áreas de Educação e Psicologia. Quando iniciei os estudos, o meu objetivo era ter um diploma e poder trabalhar, mas, naquele momento, comecei a me envolver com os movimentos sociais, por meio de grupos e partidos políticos clandestinos, em uma tentativa de lutar pela democracia. Compreendi que também precisávamos de outro tipo de educação, um projeto educativo antifascista para reeducar as nossas cosmovisões fascistas. O trabalho político nos grupos com os quais eu militava me permitiu ver que as vidas pessoais nunca devem ser entendidas de forma fragmentada; todos os âmbitos: público, privado e profissional estão em inter-relação, tenhamos ou não consciência disso. Não é coerente ser democrata, anticlassista, antirracista, antissexista em horário de trabalho e não o ser nos momentos de lazer, no ambiente familiar, na vida privada.
Naquela época, filiei-me a um partido político clandestino e comecei a trabalhar pela mudança, pela democracia e por uma sociedade socialista mais democrática, inclusiva e justa. Por um lado, eu estava começando a minha carreira, estudando o que me mandavam estudar, como era a universidade antigamente, muito conservadora e fascista. Por outro lado, nos partidos e lutas políticas, começavam a circular bibliografias, textos, discursos e debates que o franquismo proibia, mas que foram aflorando clandestinamente na sociedade. Com isso, pouco a pouco, fui percebendo a necessidade da luta política, também, no campo educativo. Tal engajamento não era necessário apenas para fazer com que as classes populares chegassem à universidade, o que até então não era uma realidade. À medida que a minha carreira foi se estruturando, fui percebendo que essas mesmas lutas políticas estavam nos conteúdos de cada disciplina, falando de uma realidade inexistente, pois as vivências eram outras. Eu me formei e finalizei a licenciatura em Pedagogia no mesmoano em que morreu o ditador Franco, em 1975, e esse evento promoveu uma forte mudança. Nessa mesma época, comecei a trabalhar em uma rádio, com programas sobre a cultura galega, aqui na Galiza, reivindicando uma cultura galega autêntica, lutando por um idioma galego, que é também uma variante do galego-português. Nós queríamos que o idioma fosse legalizado e que se inserisse na vida cotidiana e no ambiente de trabalho, e não que se tornasse uma espécie de língua proibida, só permitida em ambientes onde o Estado não vigiava.
Com o passar dos anos, tive a possibilidade de trabalhar como professor na Universidade de Salamanca, concorrendo a um posto de professor adjunto (assistente). Em 1977, ingressei na instituição supracitada, e, a partir disso, fui me aprofundando no tema Currículo, inicialmente, por meio da sociologia da educação, posteriormente, pesquisando diretamente o assunto.
Visto que era recém-chegado à instituição, eu era o último a escolher tudo. Então, a cada ano, eu me deparava com matérias novas e, em muito pouco tempo, fui me dando conta de que havia algumas que eu gostava mais. Percebi que essa docência poderia ser um grande enfrentamento, pois eu tinha que lidar, também, com a própria universidade, com o estamento universitário, que era conservador. Havia muitos companheiros, professores e professoras, que já faziam parte do quadro fixo (permanentes no cargo), funcionários catedráticos da universidade que não gostavam dos estudos nos quais eu trabalhava e investigava.
Inicialmente, notei que a bibliografia oficial, os livros que líamos, eram muito ruins. Além da abordagem fascista, eram controlados por uma espécie de metafísica ou ideologia ultraconservadora e fundamentalista religiosa.
Na ditadura espanhola, os dois grandes poderes eram a Falange (o único partido político legalizado, pertencente aos fascistas e, local de militância do próprio Franco), uma corrente similar ao nazismo de Hitler e ao fascismo de Mussolini, e, por outro lado, vigiando tudo isso e apoiando e legitimando esse racismo, a igreja católica ultraconservadora.
Nessa época, a igreja católica, ultraconservadora, estava muito distante ideologicamente da Teologia da Libertação, que só conheceríamos anos mais tarde, na década de 1970, na América Latina; corrente essa que foi proibida oficialmente na Espanha.
A igreja católica apostólica e romana, que desde o primeiro momento apoiou e colaborou com o golpe militar de 18 de julho de 1936, movimento este que tirou do poder, pelas armas, a República Democrática Espanhola, recebeu, entre outros prêmios, o encargo de governar e vigiar os sistemas educativos e o mundo da cultura. Todos os conteúdos escolares, publicações e atos culturais precisavam da aprovação da Falange e da Igreja. Dessa forma, seriam incutidos no povo espanhol uma cultura e um senso comum fascista, ultracatólico e militarista.
Contudo, clandestinamente, chegavam textos proibidos, como, por exemplo, os livros e revistas marxistas, as obras dos grandes pensadores, os sociólogos mais progressistas, marxistas, neomarxistas, etc. Nesse momento, passei aser consciente da situação da Galiza, meu povo, e com os discursos da esquerda que a apontavam como nação negada dentro do Estado Espanhol. Entrei como militante na organização nacionalista e comunista galega, União do Povo Galego (UPG).
Na formação política que recebíamos como militantes, no interior dos partidos políticos, nós trabalhávamos muito com os livros de Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Frantz Fanon, entre outros, mas tais referências não estavam presentes no discurso acadêmico.
Nós líamos, aos 19, 20 anos, os livros de Frantz Fanon, como Pele negra, máscaras brancas (2008) e Os condenados da terra (1968), e a obra de Albert Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (2007). Nós estávamos em contato com toda essa bibliografia sobre o colonialismo porque queríamos afirmar que a Galiza era uma colônia interna, não era como as colônias localizadas fora da Espanha.
A Galiza se localizava no mesmo território do Estado espanhol, mas não era a beneficiária dos excedentes econômicos e da riqueza gerada pelas empresas situadas nas nossas cidades, estes eram investidos majoritariamente em Madrid. Por exemplo, a Galiza produzia energia elétrica para todo o país, além de exportar para a França, acarretando a destruição dos nossos rios, vales e recursos agrícolas, mas os benefícios econômicos não eram investidos na nossa comunidade. A Galiza era explorada e os respectivos productos e recursos seram levados para outras ciudades fora da Galiza e para outros países. Nós, os habitantes locais, não usufruíamos do que era produzido em nossa terra, o mesmo ocorria nas colônias externas. E o nosso povo ainda precisava emigrar, pois aqui não havia onde trabalhar.
Nós víamos que havia essa situação de colonialismo presente, aqui na Europa, em muitos países. O que se percebia era que, no continente europeu, quando se construiu o Estado Nacional, determinados Estados-nação se ergueram e, junto com eles, os fenômenos de negação de determinadas identidades e povos dentro do mesmo estado. Diante desse cenário, por meio da minha formação militante, pouco a pouco, busquei ser coerente com o discurso pedagógico e com os modelos educativos vigentes, entendendo que seria necessário explorar um outro tipo de educação, de pedagogia.
Nesse momento, na Espanha, a palavra currículo quase não era empregada, optava-se pelo vocábulo didática. O mundo da didática estava dominado pelo conservadorismo, por filosofias e modelos educativos caducos e autoritários, e oconceito de educação democrática ainda não estava estabelecido, entretanto, pouco a pouco, fomos descobrindo outros livros que falavam sobre currículo. Nós, militantes dos partidos clandestinos, começamos a ler e, inicialmente, surgiu um questionamento: currículo não viria a ser o mesmo que didática? À medida que íamos nos aprofundando nesse assunto, –e por ter pessoal apreço pelas etimologias –, noto que o significado original de currículo é o mesmo que o de didática, vindo o primeiro vocábulo do latim, currere, e o termo didática, do grego didaktikós, ambos representando caminhar em uma direção, planejar-se para caminhar em uma determinada direção.
O currículo do qual falamos até esse momento está muito mais influenciado pelo pensamento de esquerda, pelo marxismo e neomarxismo, pela psicologia cognitiva de Jean Piaget e Jerome Bruner (que faziam frente ao condutismo até então dominante) e pelas políticas educativas que o trabalho britânico mais progressista vinha desenvolvendo. E começou a chegar todo o discurso do marxismo e neomarxismo, que passaram a se fazer presente.
Alguns anos mais tarde, durante a década dos 70 e início dos anos 1980, passei a ter contato com a obra de autores silenciados e desconhecidos pela universidade espanhola: Paulo Freire, Célestin Freinet, Paul Willis, Basil Bernstein, Lawrence Stenhouse, John Elliott, Jerome Bruner, etc. Há várias obras que me marcaram muito, que influenciaram muito o meu modo de pensar, entre elas: o livro compilado por Michael F. Young, Knowledge and control: new directions in the sociology of education (1971) e os livros de Michael Apple, em especial a obra Ideologia e currículo (1979). Tudo isto, mostrou-me um mundo novo, e a partir daí fui aprofundando nos estudos sobre o neomarxismo aplicado à educação e ao próprio currículo, passando a focar mais nos conteúdos sobre o assunto.
Algo que me chamou rapidamente a atenção foi o enorme preconceito ideológico que a escola defendia como cultura; temática que passou a ocupar a maior parte do meu tempo de pesquisa e que, anos mais tarde, sistematizei. Pouco a pouco, fui descobrindo que a justiça social e a justiça curricular eram coisas distintas.
No tema da justiça social incidiam todos os discursos que faziam com que as classes e coletivos sociais marginalizados e silenciados pudessem e tivessem obrigatoriamente que aceder à escolarização. O que estávamos vendo era que os pobres, as classes mais populares e as minorias, como a cigana, puderam entrar e ir ascendendo por meio do sistema educativo. Com as lutas sociais de finais dos anos 1970 e 1980, baseados nas análises sobre a classe social e as desigualdades, fomos conseguindo tornar o ensino obrigatório na prática e não somente na legislação, pois nas pesquisas sobre o que acontecia na realidade, constatávamos que quando as minorias colocavam o pé na escola, a porta da saída abria imediatamente; e pouco a pouco, todos iam abandonando os estudos. Esse panorama foi o que me levou a estudar, a descobrir e a dissertar sobre o que era a teoria da reprodução, primeiro em Bourdieu, depois em Bowles e Gintis, que era: o sistema educativo servindo para reproduzir a estrutura classista, sexista e racista da sociedade do momento. A prova era que entravam as classes populares e, em função do nível delas ou da pouca riqueza que poderiam ter, seguiam abandonando a escolaridade depois do segundo, terceiro e quarto anos, pois, naquelas condições, a maioria nunca seria capaz de concluir com sucesso a escolaridade obrigatória e, menos ainda, progredir até a universidade e ter êxito.
Como era possível que todas as pessoas que fracassavam pertenciam às classes populares? As classes mais altas tinham êxito acadêmico com muita mais facilidade. Com o passar do tempo, optei por centrar mais os meus estudos nas análises dos conteúdos curriculares e notei que os conteúdos culturais trabalhados nas escolas não têm nada a ver com o mundo dessas pessoas, não falam de suas realidades e, portanto, temos dificuldades para motivar esses estudantes a se aprofundarem nesse conhecimento e mostrar, nisso, alguma serventia.
A educação se apresenta, para mim, por esse contexto de final da ditadura e início da democracia, transformando-se em um compromisso vital. Esse compromisso político não vai se dirigir só a apostas e à preocupação com assuntos públicos. É um compromisso político, no campo educativo, nas praças educativas, nas relações com o alunado, é o meu mundo cotidiano dentro da escola.
Entrevistadores: Professor, diante de tantas adjetivações e pluralidades referentes ao termo currículo, com diferentes conceitos e definições. Hoje, qual seria a sua concepção de currículo?
Jurjo Torres Santomé: Bem, currículo é tudo o que acontece nas aulas; desde o que pretendemos trabalhar com o alunado até tudo o que fazemos na prática: matérias e os seus conteúdos, os materiais e recursos didáticos, tarefas para o corpo discente, como organizamos o espaço e o tempo, a função do professorado e do alunado, o papel das famílias e dos demais agentes sociais na aula, as funções e modelos de avaliação que desenvolvemos etc.
O currículo escolar seria o instrumento e processo pelo qual aprendemos a viver e a conviver, a ajudar, a cooperar e trabalhar juntos; a reconhecer o outro tal como é, e valorizá-lo; procurar, nesse reconhecimento, evitar as deformações das socializações, em que os grupos dominantes, para reproduzir o seu poder, construíram. Assim como as imagens distorcidas a respeito dos grupos que eles consideravam inferiores, subalternos. Os sistemas escolares têm a obrigação de trabalhar para desmontar esses imaginários hierárquicos e promover a igualdade, ainda que dentro de individualidades diversas; mas sempre iguais em direitos, conforme as Declarações dos Direitos Humanos.
É imprescindível e urgente assumir que todos os adultos de hoje, que foram escolarizados, receberam a educação racista, classista, sexista, colonialista, etc., sem que ninguém tenha consciencia disso, porque ninguém conscientemente diria que é teoclassista ou que despreza a outros coletivos. Esses preconceitos e olhares seletivos funcionam como um mecanismo automático. A educação é um diálogo em que estamos continuamente debatendo um com o outro, argumentando e contra-argumentando, buscando maneiras de demonstrar por que determinada teoria funciona ou não. Se não fizermos um ensino baseado no diálogo, no debate, procurando escutar as vozes silenciadas e marginalizadas, o discurso elitista se reforça e se consolida de modo reprodutor, conservador, racista, sexista, classista.
Portanto, se nós queremos uma sociedade justa, devemos ser muito conscientes de que em meio a enorme importância das políticas econômicas, industriais, sanitárias, culturais, há uma instituição-chave que tem um poder enorme: as escolas. No ambiente escolar, é construída a visão do que é bom, do que vale a pena, logo, do que não é bom. Se esses processos não se produzem democraticamente, se não se produzem dialógicamente, debatendo, argumentando, contra-argumentando num espaço de liberdade de pensamento, então é previsível que a colonização mental, a dominação ideológica continue a ocorrer.
Atualmente, os grupos hegemônicos estão dando ainda mais poder a essa “escola”, por meio dos grandes meios de comunicação, que, de certa forma, controlam e manipulam a informação. Na Europa, está crescendo o pós-fascismo, o neonazismo, tendo como um dos mecanismos de ascensão as fake news, as notícias falsas, que têm um enorme poder. Grupos políticos e econômicos muito poderosos, até mesmo alguns governos, estão contratando empresas de informática para espalhar inverdades, inundando as redes sociais com perfis inexistentes, divulgando informações que soam verossímeis, apesar de falsas, com a finalidade de atacar e desprestigiar grupos e políticas progressistas e ajudar os grupos fascistas, neonazistas e de direita nas eleições. No Brasil, acredito que, infelizmente, vocês conhecem muito bem esse tipo de estratégia.
A quantidade de notícias falsas que circularam por meio de mensagens nas redes sociais é imensa, pois muitas pessoas repassam fake news sem verificar a veracidade da informação. Ao observarmos essalinguagem de fake news, nos indagamos: a quem favorece? A extrema direita? Essa é a pergunta. Esse tipo de desinformação era praticado nas escolas, por meio dos conteúdos, dos livros didáticos, da injúria educativa, mas atualmente a notícia circula por outros meios. Se você olha para o seu país, para o mundo, um dos assuntos mais falados, mas sobre o qual raramente há um debate democrático, é: Qual é a cultura escolar que dizemos ser obrigatória a todas as pessoas e que taxa aqueles que não a possuem de ignorantes? Onde debatemos isso democraticamente? Quem controla os livros didáticos nas escolas? Quais autores e autoras escrevem essas obras? Afinal, as informações que aparecem nos livros didáticos são aceitas como verdade absoluta, neutra e objetiva.
Os livros didáticos, em espanhol, “libros de texto”, como sugere a origem etimológica, são os textos, as obras sagradas, como a Bíblia para os cristãos e o Alcorão para o Islã. Se algo está na Bíblia não haverá revisão histórica, não há forma de contestá-la. Para tal, inventaram uma ciência, que é a teologia, para “interpretar”, tornar crível tudo o que há nos textos bíblicos e que, na atualidade, a ciência demonstra que é falso, como, por exemplo, que a mulher nasceu da costela de um homem, que Deus criou o mundo em sete dias, entre outras coisas, caindo em total contradição com o que hoje demonstram as teorias evolucionistas. O que eu quero dizer é que os conteúdos escolares, que a cultura que a escola legitima como cultura e como verdades objetivas, científicas e neutras são concepções que não escutaram as vozes das mulheres, dos povos originários dos países colonizados, das classes populares etc.
Os livros didáticos reproduzem e impõem a cultura oficial que legitima uma suposta superioridade das elites sociais, dos povos colonizadores, das empresas multinacionais, dos poderosos. Essas obras representam apenas os homens, reforçam uma cultura patriarcal, classista, racista, idadista, urbana, colonialista, militarista, desrespeitosa com a sustentabilidade do planeta. Procure e tu não encontrarás um livro didático que não seja patriarcal, classista, racista, todos são assim. Levei muitas décadas de minha vida profissional revisando continuamente materiais curriculares, não encontrei um que não fosse racista, classista ou sexista, nenhum, que coincidência.
Entrevistadores: Professor, como os estudos curriculares podem contribuir para uma educação escolar mais inclusiva?
Jurjo Torres Santomé: À medida que estas pesquisas e estes estudos curriculares estejam presentes. Se você faz uma pesquisa e introduz entre as dimensões que merecem atenção, –por exemplo, no seu caso, que trabalha junto a pessoas com deficiência visual –, a partir daí elas se tornam visíveis. Você passa a vê-las como aparecem e se aparecerem, porque elas podem não aparecer. Pessoas cegas nunca aparecem em livros didáticos. Pode parecer um com óculos, porque tem uma visão cansada, mas não porque é cego. Ao não aparecer, tampouco os vemos. Descobrimos que uma pessoa é cega porque passamos diante dela na rua. Em sua vida cotidiana, você não está pensando em como as vê e pode se comunicar com elas, ou com surdos, ou com quem quer que seja. Ao não estarmos acostumados em nossa vida cotidiana a interagir com pessoas com deficiência, elas acabam por se converter em invisíveis, até para o nosso trabalho como profissionais, seja o que for (arquitetura, urbanismo, engenharia, educação, mundo laboral). Isso explica porque os desenhos das cidades, ruas, praças, prédios, lugares de trabalho, de ócio, o interior das nossas casas, escolas, universidades, entre outros lugares, dificultam a mobilidade, as inter-relações na vida cotidiana dessas pessoas e as nossas interações com elas.
Há toda uma série de coletivos que não aparecem nas preocupações das pesquisas e, portanto, não são uma dimensão a ser considerada. Ou seja, você analisa os materiais curriculares, os livros didáticos e, historicamente, conclui que não foram contemplados. Até os anos 1980 a única coisa a que se prestou atenção foram as classes sociais, porque, no final das contas, os movimentos sociais existentes estavam orientados e muito marcados pelos partidos marxistas e neomarxistas.
Quando os movimentos feministas começaram a se organizar minimamente, surgiram, também, estudos analisando a presença das mulheres nas ilustrações, nos próprios conteúdos, a presença da mulher como conteúdo, as vozes femininas etc. As justas reivindicações e lutas do feminismo explicam suas realizações.
Este milênio, o século XXI, deve ser considerado como a era do feminismo. Algo semelhante ao que se passou com a infância desde princípios do século XX e que preconiza o título do livro “O século da infância”, da feminista sueca Ellen Key, publicado em 1900. As reivindicações e mobilizações sociais e o bom trabalho de muitos profissionais em todos os âmbitos ajudaram a estruturar as lutas pelos direitos de qualquer coletivo ou povo marginalizado, silenciado, ignorado; inclusive os direitos das pessoas com deficiência.
Os pesquisadores da sociologia voltados às pessoas com deficiência foram, em grande medida, a força motriz a intervir nesse universo, percebendo e argumentando, com grande sucesso, que a Carta dos Direitos Humanos não estava sendo respeitada. Até então, o mundo das pessoas com deficiência era o centro de preocupação apenas da medicina e da psicologia, esta última voltada apenas para a psicologia clínica, e não para a psicologia social e para a Educação Inclusiva. As famílias com maior capital cultural e com filho(a) com deficiência também foram grandes responsáveis, visto que começaram a se preocupar com o que era feito na escola, com maneiras de ajudá-los etc.
Na Espanha, um dos países europeus mais avançados nessa legislação nos anos do governo socialista, com o Ministério da Educação Socialista, durante a década de 1980 e início dos anos 1990, elaborou uma nova lei educacional, possibilitando esse discurso da integração, que afirmava que as crianças com deficiência deveriam estudar junto às crianças sem deficiência. Dessa forma, os colégios de Educação Especial foram fechando aos poucos, e os recursos e especialistas dessa área passaram para as escolas regulares, visando beneficiar a todos. Se na escola é ensinada a convivência, não posso aprender a viver junto com uma pessoa cega se eu não a tenho aqui comigo e não nos conhecemos e nos reconhecemos. Então, nos anos 1990 e, a partir desses eventos, a inclusão vaise consolidando e tornando-se cada vez mais exigente, inclusive no que diz respeito à necessidade de se revolucionar todo o campo didático.
Ainda em meados dos anos 1970, fiz uma especialização em Educação Especial para pessoas com deficiência. Em todos os livros que estudei na carreira, não há nenhum hoje que seja útil, válido. Essas obras são unicamente materiais para historiadores, para comprovar como a educação foi melhorando. Em todos aqueles livros e documentos havia uma certa barbárie do ponto de vista atual, porque éramos informados de que as pessoas com deficiência tinham uma síndrome ou outra característica que delimitava o máximo que poderíamos aspirar delas, que tinham limitações insuperáveis e que existia um topo na melhora que não poderíamos superar.
Atualmente, à medida que vamos nos aprofundando no discurso teórico, sociológico e político da deficiência e inclusão, descobrimos que as nossas próprias metodologias, nossas formas de organizar o ensino estavam estabelecidas sem contar com essas pessoas e, portanto, se esses indivíduos entrassem na escola, iriam fracassar, pois não eram esperados.
Auguste Comte afirmava que existia uma área do conhecimento na ciência que freava o desenvolvimento científico, a medicina. Os médicos estavam atrasando o desenvolvimento da ciência? Sim, porque estavam classificando, assumindo que as doenças se classificavam de duas maneiras: curáveis e incuráveis. Se essa enfermidade fosse incurável, não haveria mais investigação, apenas o enfrentamento, mas com a certeza da impossibilidade de cura.
O desenvolvimento da ciência é exatamente o oposto, é baseado no fato de que eu não sei como resolver esse problema, mas deve haver uma solução, por isso, continuarei pesquisando e ensaiando. A medicina aprendeu isso muito bem, todos sabemos hoje que há enfermidades que ainda não conseguimos curar, por exemplo, a Covid-19, mas sabemos que isso deve ser possível. Não há ninguém para dizer que isso é impossível, não, alguns levaram mais tempo, outros menos, mas tem que ser possível. Todo mundo está pesquisando até encontrar uma vacina, vamos encontrá-la.
A partir da década de 1980, de 1985 a 1990, aplicamos o mesmo método, nós não podíamos melhorar a inclusão educacional desses coletivos sociais, porque a compreensão era que já havíamos chegado ao topo, ao nível mais alto possível. A partir daquele momento, em que derrubamos aquele suposto topo, a única coisa que dissemos foi: Ainda não sei como alcançar aquelas ou aqueles que têm essas características para resolver ou aprender esses problemas, mas tem que haver uma maneira e, a partir desse modo, todos os métodos de educação se revolucionaram, porque começamos a ensaiar e a fazer o mesmo que os médicos: «Essa forma não nos serve, tentaremos outra», “Isso não nos ajuda, vamos tentar de outra forma até que inventemos uma que nos ajude a fazer isso”. Então, nesse ponto, passamos a ter pessoas com deficiência que entraram em carreiras universitárias e conseguiram obter títulos de doutorado. Há 30 anos, a ciência dizia que isso era impossível. Hoje, as pessoas com síndrome de Down formam-se em carreiras universitárias e isso significa que o sistema educacional assumiu essa responsabilidade. As metodologias didáticas e o currículo descobriram que deve haver uma forma de essas pessoas aprenderem. Revisou-se todos os limites que tínhamos construídos artificialmente até derrubá-los e acharam uma maneira de essas pessoas com deficiência aprenderem e estarem com outros indivíduos. E as pessoas sem deficiência aprenderam a vê-las, a conviver, a trabalhar, a desfrutar, a estabelecer toda classe de relações com elas.
Dessa forma, à medida que estão nas salas de aula, todos aprendemos a conviver, porque estamos na mesma aula e nos (re)conhecemos. Vejo que tal pessoa faz isso melhor ou pior, compensamo-nos e ajudamos uns aos outros, porque aprendemos a estar juntos. Se vivermos separados, sempre suspeitaremos do outro, que é o problema que pode surgir para nós agora, sobretudo como um dos efeitos da covid-19, que gera o medo de que outros possam nos contaminar, deixar-nos doentes e isso é perigoso. Basta lembrar que os slogans políticos eram: “Cuide-se!”, “Fique longe dos outros!”. Todo um vocabulário ultraindividualista, como “Salve-se você mesmo”.
Entrevistadores: Professor, no Brasil, um de seus livros é chamado de Currículo escolar e justiça social: o cavalo de Troia da educação (2013). Na Espanha ele é chamado de La justicia curricular, el caballo de Troya de la cultura escolar (2011). Gostaria que o senhor falasse um pouco dessa mudança no título, do conceito de justiça curricular e como ele pode contribuir para a inclusão escolar.
Jurjo Torres Santomé: O termo “justiça social” não me agradou muito, foi o tradutor ou a editora que mudou esse nome. Em espanhol é “justiça curricular”. Nesse livro, há a diferença entre a justiça curricular, a justiça educativa e a justiça social. São coisas diferentes. Quer dizer, a justiça curricular é um elemento que estava passando despercebido dentro dessa luta pela justiça social.
A justiça tem muitas dimensões: a justiça social, a justiça econômica, a justiça afetiva, a justiça administrativa, a justiça em todos os campos, quer dizer, você conhece cada ministério do governo e esses ministérios fazem políticas justas e injustas. Há a justiça econômica, justiça jurídica, justiça religiosa, entre outras, logo, há a justiça educativa. Mas a educação é um campo que tem muitas parcelas, tem muitas pessoas que creem que a justiça educativa começa ou termina permitindo que todo mundo vá à escola. Inclusive fazemos com que a escola seja obrigatória, que sejam escolarizados, que não passem fome, incluindo a alimentação na escola para que aprendam. De alguma forma, readaptamos todos os elementos escolares, mas sem tocar no livro didático, por assim dizer. Ou seja, vamos fazer com que entrem nas salas, que tenham umas cadeiras confortáveis, mesas acessíveis a cada estudante e que se acomodem as condições e as possibilidades físicas de cada estudante etc., mas não entramos nos conteúdos escolares.
O currículo é uma parcela da educação e é tudo o que vamos fazer dentro daquela aula, aquilo que consideramos que vale a pena que se estude e os modos como se trabalha, se organizam as tarefas escolares das crianças, com os livros didáticos ou com qualquer outro recurso didático etc. A justiça curricular é que vai olhar, aplicar, aprofundar em que medidas esses conteúdos que estão sendo abordados nos livros didáticos, nos materiais curriculares são justos ou não, quer dizer, de que forma essas culturas visíveis e invisíveis, que trabalhamos nas nossas pesquisas e publicações, são também elementos que perpetuam essas situações de desigualdade social. Quando analiso os materiais curriculares, verifico que as classes sociais populares não estão representadas, e quando estão são deturpadas, justificando situações de subordinação. A escassa presença das mulheres nos conteúdos, a restrição dessa figura feminina a tarefas domésticas, aos cuidados da casa e coisas sexistas. A comunidade cigana aqui na Espanha, por exemplo, vejo que estão nos colégios, mas não nos livros escolares. Eles dizem: “Se não falam de mim, eu não existo?”. A justiça curricular revela de que modo todos estão presentes nos conteúdos escolares, se o que dizem de nós é justo, e se as nossas vozes estão ali presentes. Os povos indígenas estão presentes, sim, mas por que falar por eles? Por que outros falam por nós? E o mesmo acontece com muitos outros coletivos e realidades sociais.
Então, nota-se que essa justiça curricular revela em que medida todos esses conteúdos são respeitosos com todos os coletivos sociais, desmontando preconceitos, prejuízos e ideias falsas que temos sobre os outros e, portanto, de alguma forma é inclusiva. A justiça curricular nos mostra como colocamos os “outros” no currículo, nos conteúdos, no que lemos e estudamos, se esses coletivos sociais estão presentes e se somos respeitosos com eles. Ou seja, se somos respeitosos, inclusivos e os reconhecemos no sentido de justiça, como povos iguais a nós, que podem ter diferenças, mas são iguais em relação a direitos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco, um parâmetro para o respeito das diferenças entre os povos. Todas as Declarações de Direitos Humanos, não só a de 1948, mas todas as posteriores aprovadas a partir das lutas sociais, como as cartas de Direitos Humanos sobre os povos indígenas, sobre as mulheres, sobre a infância, sobre a pessoa com deficiência etc. Se o corpo docente desconhece a carta de Direitos Humanos, é muito mais difícil que seja justo, mesmo sem pretenderem, irão atentar contra os diversos coletivos sociais.
Todavia, faltam declarações de Direitos Humanos específicas a serem aprovadas, por exemplo, sobre o meio ambiente, sobre as pessoas LGBTQIA+, falta a carta do direito à cidadania, à informação e ao conhecimento. Um governo não pode tolerar que circulem fake news, notícias falsas que estão sendo instrumentalizadas política e economicamente por grupos, por exemplo, de extrema direita, por grandes monopólios financeiros, por igrejas fundamentalistas etc. Deve haver uma legislação que proíba isso, deve-se defender a liberdade de pensamento e o direito à informação, mas informação verídica, não mentiras. Eu não posso injuriar uma pessoa, pois posso ir à justiça por tal feito, pois tampouco uma pessoa pode injuriar os coletivos sociais mediante notícias falsas. Deve-se vigiar, prestar a atenção e corrigir nos agrupamentos escolares, na formação, nos conteúdos, nas formas de avaliar, nas formas de ensinar, considerando que há pessoas, por exemplo, com deficiência visual, portanto, tenho que ter uma metodologia de ensino que as contemple.
Na política inclusiva essas pessoas devem estar presentes. É nossa obrigação que estejamos juntos. Temos que aprender a conviver e se aprende resolvendo problemas juntos. Não sabemos como se pode solucionar isso, mas sabemos que está ali, portanto, temos que buscar uma solução. É o mesmo que estamos fazendo com a Covid-19, e estamos aprendendo rapidamente, pois aqui é igual, mas em vez de ser para um vírus, é para esse vírus informativo que nos dão para construirmos um sentido comum que inferioriza e demoniza aqueles que não conhecemos.
Temos um longo caminho com as mulheres, com os povos indígenas,com os ciganos, com quaisquer coletivos sociais, com as culturas silenciadas, mas todos juntos, todos temos os mesmos direitos. É obrigação política e moral de cada cidadão fazer frente às injustiças praticadas contra cada um desses coletivos sociais silenciados e, por vezes, injuriados por meio das barbaridades e mentiras que dizemos explicita e implicitamente sobre eles.
A justiça curricular é o resultado de uma análise curricular que é concebida, implementada, avaliada e pesquisada, tendo em conta, o grau de respeito e resposta às necessidades e urgências de todos os grupos sociais; ajuda-nos a ver, a analisar, a compreender e a julgar a nós próprios como pessoas éticas, solidárias, colaborativas e corresponsáveis num projeto mais amplo de intervenção sociopolítica que visa a construção de um mundo mais humano, justo e democrático.
Entrevistadores: Nesse mesmo livro, o senhor fala sobre intervenções curriculares inadequadas. Como elas poderiam contribuir para a inclusão escolar?
Jurjo Torres Santomé: São frutos das análises que vinha fazendo sobre os conteúdos dos livros didáticos, então, o que vou detectando é como se falseia, se deforma e distorce a informação, que fala sobre essas realidades sociais, sobre esses coletivos sociais. Há uns que são por silenciamento. O silêncio não deixa de ser uma forma de falar. Generalizamos e pensamos que todos são incluídos ao generalizar, que todos estão presentes (no livro didático), e não é bem assim.
Essas formas inadequadas se referem a como se distorce a presença, o que dizemos e o que há sobre esses coletivos sociais nos conteúdos curriculares. Coube propor uma forma, um agrupamento, uma classificação das principais formas de distorção, de manipulação que há sobre essa informação nos livros didáticos. Há dezenas de formas que vou analisando e me refiro à maneira como tratamos esses conteúdos e, portanto, ao modo com que somos curricularmente justos ou injustos.
Se eu me refiro aos povos indígenas como se não tivessem nenhuma cultura e enquanto seres muito ingênuos, e digo: “Bom, temos que ser bons com eles, querê-los, amá-los”, é uma forma de paternalismo, mas é uma forma de paternalismo que não é justa, não enfrenta o problema de justiça. Pode cair na caridade e não é uma forma de justiça. Então, pode-se ver como todos os discursos falham, se alteram e minimizam dados, se ocultam histórias e, portanto, os conteúdos estão deformando o que sabemos e o que vamos aprender sobre esses coletivos e essas culturas silenciadas.
Há muita informação errônea, temos que prestar muitíssima atenção nos conteúdos e, sobretudo, no tratamento deles. Eu posso deformar e ser injusto com os povos indígenas não falando deles, ou falando e distorcendo as informações sobre eles, infantilizando-os, exagerando certos dados e não reconhecendo as suas vozes, ou com análises paternalistas, ou não contextualizando a sua história e as realidades do presente, reduzindo a problemas psicológicos individuais, reproduzindo comportamentos racistas, sexistas, classistas, homofóbicos etc., que têm um fundo, uma causa estrutural; outro modo de tratar essas realidades injustamente e as deformando é não deixando que eles mesmos digam que problemas têm e, que soluções veem; outra estratégia é cair no ceticismo normativo, ou seja, que não podemos julgar as condutas de outros povos, porque respondem a outras tradições diferentes das nossas, por exemplo, que como europeus não devemos opinar e julgar a ablação ou mutilação genital da mulher em certos grupos, em alguns países africanos etc. No livro da Justiça Curricular, desenvolvo muito mais esses tipos de modos de manipular, silenciar a informação sobre a realidade nos conteúdos culturais que se estudam nos livros e materiais didáticos. Isso é a justiça curricular, é ver todos esses conteúdos, o que nós estamos dizendo aos estudantes que é cultura, o que queremos que aprendam e em que medida as diferentes culturas estão presentes, se os coletivos sociais são tratados justamente, se estão sendo silenciados ou deformados e convertidos em seres subalternos, tratados como “inferiores”, violando as declarações de Direitos Humanos vigentes.
Entrevistadores: Professor, quais são os efeitos do neoliberalismo nos currículos e como ele poderia influenciar a inclusão escolar?
Jurjo Torres Santomé: Eu intuo que essas políticas econômicas têm que ter uma repercussão, também, na educação e comecei a pesquisar, mais diretamente, desde o início da década de 1990 sobre o assunto. E, nos anos 2001, quando já levávamos uma década falando de neoliberalismo, publiquei o livro Educación en tiempos de neoliberalismo (2001), que aborda como e por meio de que mecanismos e discursos essa política de mercado se introduz na educação, condicionando por completo os propósitos do sistema educativo e da escolarização da população. Continuei com essa discussão no livro La desmotivación del professorado (2006) e na obra já mencionada anteriormente da Justiça curricular. Esses são debates que estão continuamente na minha cabeça, dando voltas. Passei a observar como as políticas educativas, que estão legislando, apresentam, todas, determinadas características. Comecei a comparar legislações de distintos países e, à medida que fui aprofundando e detectando novas faces do neoliberalismo na educação, acabei por voltar a sistematizar no meu último livro, até o momento: Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas (2017). É um livro que está escrito na Espanha, conforme a realidade da Espanha, mas penso que bastante coisa pode ser extensível a outras realidades, pois não podemos esquecer que o neoliberalismo funciona globalmente, em todos os países. Os leitores dirão se são extensivos ou não. Nós (na Europa) vivemos no chamado “primeiro mundo”, hierarquia que segue a ser a consequência das políticas dos antigos impérios, que continuam mantendo relações coloniais ou, de modo mais disfarçado, neocoloniais, de subordinação de povos estrangeiros, sobretudo da África e, também, da América Latina. Então, pergunto: como isso segue se reproduzindo, visto como lógico e normal sem que as pessoas dos nossos países, nem dos latinos, nem dos africanos lutem contra isso? Conforme vou pesquisando sobre esse tema, em especial apoiando-me na obra e no pensamento de Antonio Gramsci, acabo por me convencer do importante e decisivo papel das instituições escolares na construção de um sentido comum, de um conhecimento e de uma visão da realidade que passamos a considerar como “objetiva”, “neutra”, “científica” e, inclusive, a etiquetamos, também, como “despolitizada”, de caráter neoliberal, patriarcal, racista e neocolonial; esse sentido comum hegemônico faz com que esse mundo apareça imediatamente como lógico e inevitável. Desse modo, nós sentimos que não temos culpa nem responsabilidade sobre aquelas injustiças que conseguimos perceber (e tampouco as veremos todas), tanto sobre as injustiças que vemos ao nosso redor, quanto em países mais afastados geograficamente.
Esse neoliberalismo vai reacomodando,segundo os seus interesses,todas as dimensões do sistema educativo. Por exemplo, e de modo muito importante, nos acessos às escolas, na privatização dos ambientes escolares e, simultaneamente, pondo toda classe de obstáculos aos governos para atender à educação pública. Começam a proliferar discursos para que a população veja que a educação pública não funciona bem e que o que funciona são os negócios privados.
Uma instituição que desde o ano 2000 lança a cada três anos os ataques mais duros e injustos contra as escolas públicas é a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por meio desse perverso instrumento que são as provas Programme for International Student Assessment (PISA). Passei a olhar mais detidamente o que diz a OCDE; faço leituras e análises em profundidade dos numerosos documentos que a organização publica com grande frequência, muitos deles bastante volumosos. Vejo as políticas educativas que tratam de fazer frente ao insucesso escolar “avaliado” (pois só temos dados das matérias avaliadas pelo PISA e do que esses testes psicométricos medem), seguindo as recomendações da OCDE ou do Banco Mundial, e vou constatando que as soluções acabam por favorecer a entrada do mercado, das instituições e negócios privados para resolver todos os problemas e, em consequência, gerando a imagem de que o público funciona mal, culpabilizando os professores do ensino público, o que é muito preocupante. Pouco a pouco deixamos de falar de cidadania e passamos a falar de clientes, consumidores e produtores; não se fala das pessoas como seres sociais, que vivem em sociedade, que se necessitam mutuamente e, portanto, querem e lutam por uma melhor justiça social.
Então, nesse último livro, abordo como as políticas educativas passam a privilegiar determinadas áreas de conhecimento, enquanto outras áreas de conhecimento não recebem a devida importância. Há um capítulo forte, primeiro, sobre como se faz e se tomam as decisões sobre as políticas educativas, tanto no meu país como na maioria dos países da OCDE. Outro capítulo analisa criticamente como hoje, em nossa sociedade, prestamos a atenção e valorizamos algumas áreas do conhecimento em detrimento de outras. Quando a OCDE nos compara aos países de todo o mundo, nos compara somente em quatro áreas do conhecimento –as ciências, as tecnologias, as engenharias e a matemática –, agora colocaram a educação financeira, mas ninguém nos diz a importância, o rendimento e os problemas do nosso alunado nas humanidades, na filosofia, na ética, nas artes, nem nas ciências sociais; o que está acontecendo? Que formação estão tendo os nossos estudantes?
Que características têm todas essas áreas que a OCDE não avalia? São as áreas que nos socializam, que nos tiram de nós mesmos e nos obrigam a prestar a atenção nos outros. Nas matemáticas e nas ciências os seres humanos não aparecem, não os percebemos como seres sociais, como cidadania; somente aparecemos como quem resolve um problema de física ou de matemática, mas não irão olhar como e em que medida essa matemática ou física está sendo aplicada com critérios de justiça social, considerando como afetam a vida das pessoas. A construção dessas personalidades e mentalidades neoliberais, patriarcais, racistas e neocolonialistas está sendo conformada por meio de discursos, práticas educativas e curriculares, pela obrigatoriedade e atenção prioritária a determinadas matérias, conteúdos, competências, objetivos e estândares de rendimento, que acabam por dirigir a atenção do professorado, dos estudantes e das famílias exclusivamente sobre esses conteúdos.
O PISA, o Progress in International Reading Literacy Study (PIRLS) e o Trends in International Mathematics and Science Study (TIMSS), ao avaliar e quantificar essas matérias e competências, consideradas como “as verdadeiras chaves para o futuro das novas gerações”, funcionam como instrumentos com grande poder orientador e disciplinante de pessoas e governos dos países.
Vemos como lógico o mundo ser assim e não percebemos as injustiças e o quanto nós contribuímos para que elas aconteçam. Isso ajuda a criar rebeldes-ignorantes ou sábios-ignorantes, pessoas que sabem muito a respeito de um determinado assunto e nada de outros, mas aquilo que sabem, como sabem muito, há o perigo de acharem que já sabem tudo, e assim passam a opinar e a decidir sobre tudo como se fossem grandes sábios enciclopédicos. Uma boa e justa educação deve dificultar e, inclusive, impossibilitar que as pessoas educadas ponham essa formação recebida a serviço do capitalismo e do neocolonialismo.
Entrevistadores: Professor, teria como o senhor falar um pouco sobre o currículo integrado e sua contribuição para a inclusão escolar?
Jurjo Torres Santomé: O currículo integrado tem como finalidade contribuir para que os conteúdos culturais e escolares, que tradicionalmente estão organizados de modo disciplinar, trabalhem e se pesquisem de modo muito mais interdisciplinar. As disciplinas moldam a mente, o modo de ver e de interagir com a realidade. Se somos formados sobre a base de matérias escolares parceladas em microdisciplinas, acabaremos por aprender a ver e analisar a realidade de modo parcelado, fragmentado, como compartimentos estanques. Entretanto, a realidade não existe como compartimento estanque, está tudo misturado, inter-relacionado, mas cada um de nós passa a se comportar como esses ignorantes sábios, somos sábios de uma parcelinha e, com essa parcelinha, tratamos de explicar, ver e solucionar todos os problemas que há no mundo e isso tem efeitos secundários ou colaterais (como expressava George Bush ao levar a cabo a invasão do Iraque) que costumam ser muito prejudiciais para pessoas e para o planeta.
O ensino integrado é a resposta à procura de explicações do porquê esses tipos de comportamentos e decisões profissionais e pessoais estão sendo produzidos, podendo, com facilidade, concluir que todas as matérias da carreira e todo esse conhecimento foram construídos em paralelo, sem entrecruzar-se, sem estímulos e facilidades para estabelecer interconexões entre as distintas disciplinas estudadas. Essas pessoas e profissionais têm dificuldade de saber, por exemplo, a relação que tem a matemática com as ciências sociais, com a fisiologia e com a anatomia humana, não sabemos o que tem a ver isto com aquilo. O currículo integrado serve para que, desde crianças, possamos ver que a realidade deve ser analisada com múltiplas perspectivas, não só com o conhecimento especializado científico, mas com nossa vida cotidiana.
Quer dizer, se eu milito em organizações ecologistas e quero um determinado consumo sustentável e sou respeitoso com a natureza, eu não posso ir ao mercado comprar uma calça e uma blusa e simplesmente ver se fica bem ou não em mim. Terei que olhar, inclusive, a etiqueta, onde foi produzido, por quem, quanto custa produzir isso, que benefícios têm, do contrário posso estar militando para favorecer e ajudar o terceiro mundo e, ao mesmo tempo, estar comprando um produto que está sendo fabricado por escravos ou por crianças escravas e com matérias-primas não obtidas de modo sustentável, respeitando o equilíbrio do planeta.
Por conseguinte, o currículo integrado tem como objetivo prioritário nos ajudar a construir um pensamento integrado que tome conta das tomadas de decisão, das análises que fazemos da realidade, das múltiplas perspectivas que precisam estar em inter-relação, para não cometer erros e injustiças porque não percebemos que isso estava vinculado com aquilo outro etc.
Entrevistadores: Professor, a gente pode falar que existe um currículo inclusivo?
Jurjo Torres Santomé: Penso que, todavia, estamos muito longe. Um currículo inclusivo parte primeiro de uma teoria e concepção de justiça social, que assume uma obrigação política e moral com que todos os coletivos sociais cheguem às escolas e em condições dignas, bem alimentadas, que suas famílias tenham condições para prestar atenção suficiente, que tenham uma casa, um trabalho e salário digno, os cuidados e a satisfação das necessidades afetivas etc.; tudo isso faz parte da consideração da justiça social e educativa. A justiça curricular, por sua vez, passaria a ver de que forma, –uma vez que estamos com esses coletivos na escola, os conteúdos, a forma de organizar os espaços, a aula, os recursos didáticos, as metodologias, os agrupamentos que fazemos dos estudantes para as tarefas e as aprendizagens escolares etc. –, estamos contemplando esses diferentes coletivos sociais e estamos sendo respeitosos e justos com cada um deles, tratando-os como iguais em direitos e, também, ao mesmo tempo, como diferentes. Desse modo, esses coletivos silenciados se convertem em visíveis e eu busco como atender as necessidades de cada um desses coletivos em minhas aulas.
Um currículo inclusivo torna obrigatório o acesso de todas as crianças às escolas, que todas elas tenham os seus direitos respeitados durante toda a sua escolarização, que se sintam valorizadas e constatem que o seu professorado é otimista sobre as suas possibilidades de aprendizagem, que confia neles e os anima sempre e, finalmente, que todas tenham sucesso escolar. A inclusão é incompatível com insucesso escolar. Se uma criança entra na escola e não tem êxito, isso significa que a justiça social ou a justiça curricular funciona mal, ou ambas funcionam mal. Em alguns locais, essas pessoas não estão sendo reconhecidas, ou nos conteúdos ou na forma de organizar o espaço, nas tarefas que propomos, nos modelos de avaliação, nos recursos didáticos que utilizamos com esse estudante e o que necessitam. O pressuposto é: um currículo inclusivo tem que dar lugar para que todo estudante entre no sistema educativo e permaneça, sinta-se reconhecido, busque reconhecê-lo e tenha sucesso escolar. Se o estudante entra na escola e abandona rápido isso significa que o currículo não é inclusivo; ou, para ser mais claro: que esse estudante que tem insucesso não está capacitado para poder exercer os seus direitos como cidadão. Não esqueçamos que, em concreto, a obrigatoriedade da escolarização é a obrigação que a sociedade assume com as novas gerações que, desde o momento do nascimento, já adquirem a condição de cidadãos, e que por intermédio da escola se capacitarão para poder exercê-la plenamente.
A justiça curricular e a justiça democrática são dimensões da mesma ideia. Não pode haver uma educação democrática se há injustiça curricular. Se há justiça curricular é porque esse conhecimento passa pelo diálogo, escuta a voz do outro, tem participação de todos e é para todos. Não deveria haver um sistema educativo não democrático, uma aula não democrática não possibilita uma educação justa. A democracia deve ser praticada, vivida e, assim, poderemos nos ajudar e nos corrigirmos, continuamente, uns aos outros numa situação de diálogo e de liberdade de expressão.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Carlos Alberto Coutinho Neves de. Franquismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (Org.). Dicionário Crítico do pensamento da direita: ideias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000. p. 195-196.
APPLE, Michael W. Ideology and Curriculum. Nova Iorque: Routledge; Kegan Paul, 1979.
FANON, Frantz Omar. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FANON, Frantz Omar. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
KEY, Ellen. El siglo de los niños. Madrid: Morata, 2021.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
ONU (Organização das Nações Unidas). Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 11 dez. 2021.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. El curriculum oculto. Madrid: Morata, 1991.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Globalización e interdisciplinariedad: El curriculum integrado. Madrid: Morata, 1994.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Educación en tiempos de neoliberalismo. Madrid: Morata, 2001.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. La desmotivación del profesorado. Madrid: Morata, 2006.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. La justicia curricular: el caballo de Troya de la cultura escolar. Madrid: Morata, 2010.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Currículo Escolar e Justiça Social: o cavalo de Troia da educação. Porto Alegre: Penso, 2013.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas. Madrid: Morata,2017.
YOUNG, Michael F. D. (Org.). Knowledge and Control: new directions in the sociology of education. London: Collier Macmillan, 1971.
[i] A ditadura franquista se institucionalizou na Espanha após 1937 com a junção de três partidos políticos de extrema-direita da época, tendo como líder político Francisco Franco. O franquismo teve sua base caracterizada como fascista, com cultura anticomunista, de partido único, em oposição ao liberalismo e a outros pensamentos contrários a sua ideologia, como a proibição de agrupamentos de esquerda. A ditadura franquista terminou após o falecimento de Francisco Franco, em 1975 (ALMEIDA, 2000).
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Justicia Curricular
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Jurjo Torres Santomé
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Trabajar y analizar la Justicia en educación conlleva poner el foco de atención en dos dimensiones: la Justicia educativa y la Justicia curricular.
La justicia educativa contempla las dimensiones que envuelven y condicionan lo que va a suceder en las instituciones escolares y en sus aulas, los procesos de enseñanza y aprendizaje con los que pretendemos Educar. O sea, atiende a las políticas educativas vigentes en la sociedad que garantizan el acceso y duración de la educación y, por tanto, la vida en los centros y en las aulas. Pone el foco de atención en las instalaciones y dotaciones escolares, en el profesorado y demás profesionales que trabajan en y con los centros, y en el tipo de red en la que se escolariza el alumnado, o sea, si es pública, privada o privada-concertada (1).
Por otra parte, La justicia curricular es la dimensión analítica en la que nos centramos en el interior de los centros escolares, en la vida en las aulas escolares (2).
Prestar atención a la justicia curricular obliga a tomar en consideración tanto el diseño curricular concreto que planificamos para llevarlo a la práctica en las aulas, como la praxis real de su implementación; o sea, implica hacer un seguimiento de los objetivos, contenidos, competencias, valores y procedimientos concretos a trabajar; de las tareas escolares con las que los trabajamos; de los recursos didácticos que ponemos a disposición del alumnado para sus tareas; de los roles que asignamos al alumnado y al profesorado; de la organización de los espacios y de los tiempos; y de los modos de la evaluación con los que hacemos el seguimiento de los aprendizajes.
Prestar atención a la justicia curricular es comprobar si ese currículum implementado es respetuoso y responde a las necesidades de los distintos grupos sociales existentes en la comunidad y, lógicamente en el centro y en sus aulas.
Un currículum es justo cuando las niñas, niños y adolescentes verifican que realmente sí existen, que en los recursos didácticos y en las tareas que llevan a cabo aparece su realidad, su mundo aparece; cuando se sienten representados, cuando se refleja su realidad familiar, vecinal, de la comunidad y sus problemas. O sea, cuando verifican que lo que trabajan en las aulas les permite verse, analizarse, comprenderse y juzgarse como personas éticas, solidarias, colaboradoras y corresponsables unas de otras, comprometidas con la inclusión social.
La justicia curricular es una dimensión fundamental a la que prestar atención si realmente creemos y trabajamos por hacer realidad una sociedad y convivencia inclusiva; algo que va más allá de estar juntos en las aulas y con un mismo currículum.
Podemos hablar de justicia curricular cuando el currículum que diseñamos, implementamos y evaluamos forma parte y es coherente con un proyecto social y político vigente en nuestra sociedad dirigido a construir un mundo más humano, justo, democrático y esperanzador.
Finalmente, no podemos olvidar que la Justicia curricular funciona de forma interseccional; sus dinámicas están interconectadas con las perspectivas que conforman un análisis profundo de la justicia en una sociedad o comunidad: Justicia legal – científica – social – cultural – económica – sanitaria – psicológica – afectiva – religiosa – digital – global – ecológica.
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(1) TORRES SANTOMÉ, Jurjo (2919). Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas. Madrid. Morata, 4º edición.
(2) TORRES SANTOMÉ, Jurjo (2912). La justicia curricular. El caballo de Troya de la cultura escolar. Madrid. Morata, 2ª edición.
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** Intervención como integrante de Mesa Redonda en el seminario «Desarrollar los derechos de la Infancia: extender el derecho a la educación», organizado por la Institución Libre de Enseñanza (ILE) – Fundación Francisco Giner de los Ríos. Madrid 1 de marzo de 2022
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Reseña de Rosa VÁZQUEZ RECIO (UCA) del libro:
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TORRES SANTOMÉ, Jurjo (2017)
Políticas Educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas.
Madrid. Morata
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En Education Review // Reseñas Educativas, 7 de marzo 2018
ISSN 1094-5296
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“Colonialidad, poder y construcción del saber”
Ramón Grosfoguel y Jurjo Torres Santomé
Moderadora: Cathryn Teasley
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Conversación entre Ramón Grosfoguel y Jurjo Torres Santomé.
Salón de Grados de la Facultad de Ciencias de la Educación.
Universidade da Coruña
A Coruña, 10 de mayo de 2017
Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
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Jurjo Torres Santomé
Revista Brasileira de Educação. (São Paulo – Brasil), Nº. 4 (Janeiro-Abril, 1997) págs. 5-25.
Trabalho apresentado na XIX Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1996.
Elaborar uma proposta curricular obriga a participar da reflexão sobre que tipo de cidadãos e cidadãs e de sociedade queremos construir. Essa é, sem dúvida, uma das questões mais importantes que cabe colocar no âmbito da educação e que nos obriga a realizar uma série de tarefas prévias destinadas a analisar o presente, averiguar como são hoje nossas sociedades, que problemas aparecem como mais urgentes, quais são as causas das situações injustas que detectamos.
Esse tipo de informação a respeito do mundo em que vivemos é vital para qualquer professora ou professor. Nas salas de aula, uma das tarefas realmente importantes que o professorado leva a cabo é oferecer ao alunado parcelas da realidade para sua análise e conhecimento; daí a urgência de se manter atento e fomentar um constante espírito crítico perante esse tipo de processos seletivos e escolhas com finalidade exemplificativa com que as instituições escolares operam. Ninguém desconhece que, para o coletivo docente, esse é um dever já complicado por si só e ao qual há ainda que se acrescentar todo um grande conglomerado de tarefas e rotinas que são consubstanciais com a função didática nas salas de aula, com a criação de um ambiente que estimule processos de ensino e aprendizagem. Poucos trabalhos profissionais precisam atender a tantos focos de atenção como o da docência.
Desenvolver projetos curriculares nas salas de aula obriga a estar alerta a um sem-número de questões: as tarefas que cada um dos meninos e meninas executam, o acompanhamento de suas realizações, do que sabem e do que ainda é ininteligível para eles; detectar suas percepções da realidade, valorações, expectativas e pré-julgamentos; a apreciação de seu desenvolvimento social e emocional e das situações problemáticas que afetam suas inte- rações sociais. O professorado precisa se dedicar a esse tipo de investigação nas salas de aula e, ao mesmo tempo, tem de destinar tempo a leituras, seminários de atualização constante, trabalho em equipe de planejamento, acompanhamento e avaliação dos projetos curriculares com os quais está necessariamente comprometido.
Mas, além de tudo isso, tem de estar muito bem informado sobre questões culturais, trabalhistas, econômicas e políticas que são imprescindíveis para alcançar uma compreensão adequada da co- munidade e do mundo em que vive.
Perante tal acúmulo de deveres, o professorado tende a ser seletivo em seus focos de atenção. Todavia, nos últimos anos, a forte pressão dos discursos e políticas tecnocráticas estão tratando de convencê-lo de que seu trabalho profissional é apenas uma questão de aprender determinadas técnicas didáticas, tais como realizar programações, adaptar projetos curriculares elaborados pelas editoras de livros-texto até fazê-los parecer projetos curriculares de centro educacional e de sala de aula, elaborar controles ou provas de avaliação para detectar o rendimento de cada um dos meninos e meninas da classe, estabelecer uma série de normas disciplinares etc.
Um constante bombardeio de propaganda ideológica neoliberal e decisões políticas conservadoras pretendem menosprezar a função de intelectuais que compete às professoras e professores exercer. Essa negligência para com seu papel como intelectuais é favorecida (ainda que muitas vezes não seja essa a pretensão) por certos discursos psicológicos e didáticos que, com a idéia de apresentar novas conceitualizações, modelos ou metodologias, recorrem à estréia contínua de novos jargões, que para nada servem além de desviar a atenção do professorado para questões pouco relevantes e fazer as autenticamente importantes parecerem fora de moda.
Vivemos momentos de mudança, profundas transformações sociais estão em curso na maioria das sociedades, em grande medida como conseqüência das inovações e transformações nas estruturas produtivas e de consumo. Idéias e utopias que até há pouco orientavam e serviam de eixo vertebrador a discursos e práticas libertadoras vêm sendo rifadas quase sem que se disponha de argumentos válidos para isso. Estes são momentos de perplexidade e é também agora que a reflexão e o debate coletivo se tornam inevitáveis.
Urge recuperar para a função docente a concepção gramsciana de intelectual, neste momento em que os discursos e epistemologias dominantes pretendem recortar seu papel até deixá-la reduzida a dimensões técnicas e de gestão burocrática.
Intelectual é alguém dotado de faculdades para representar, organizar e articular mensagens, visões da realidade, atitudes, filosofias e opiniões de, assim como para, um determinado público (Said, 1994, p. 11). O exercício da função de intelectual pode ser feito, logicamente, em diversas direções; ou com o objetivo de tornar razoável, natural, inevitável e neutro os interesses dos grupos que estão em situações vantajosas, em posições hegemônicas, ou para des- montar essas metas particulares e parciais. Aqueles que colaboram na primeira modalidade de trabalho intelectual costumam receber a denominação de intelectuais hegemônicos, em conformidade com o trabalho de vigilância e legitimação das atuações dos grupos hegemônicos de poder.
Ao contrário, intelectuais contra-hegemônicos são aquelas pessoas que manifestam um maior compromisso com as classes e grupos sociais mais desfavorecidos e cooperam na detecção de práticas, metodologias e discursos que funcionam tratando de facilitar e justificar sua dominação e opressão. São também aqueles que contribuem para conformar práticas libertadoras, a serviço dos coletivos sociais explorados e marginalizados, estimulando entre estes a análise de seus atuais modos e condições de vida e provocando uma tomada de consciência capaz de permitir que elaborem e coloquem em ação respostas para fazer frente à sua subjugação. Tais intelectuais possuem uma responsabilidade especial como criadores e fomentadores de situações de deliberação e debate democrático no seio dos grupos sociais mais desfavorecidos, com os quais compartilham sua vida e ideais.
Não é aceitável renunciar a pôr a serviço desses grupos todas as habilidades e conhecimentos que os professores e professoras foram construindo como intelectuais. O exercício da crítica e da investigação é algo que define sua formação e a função de seu trabalho. Nessa direção, mecanismos com maior poder democratizador como a investigação-ação democrática e crítica são fundamentais para levar a cabo a revisão das práticas e discursos que, tanto no sistema educativo como em outras esferas sociais, não costumam levar em consideração a história, vozes e interesses de grupos sociais silenciados como as mulheres, a classe trabalhadora, meninos, meninas e adolescentes, as pessoas idosas, os povos, etnias e nações oprimidas.
O fato de realizarem esse trabalho de debate e análise não equivale a serem os únicos responsáveis por tal análise e pela formulação ou sugestão de linhas de ação; muito pelo contrário. É trabalho de intelectuais ir favorecendo que um número cada vez maior de pessoas possa exercer essa tarefa de análise e reflexão a respeito do que aconteceu e está acontecendo e sobre qual pode ser o futuro. Compartilhar e divulgar esse trabalho entre os membros desses coletivos sociais mais desfavorecidos, potencializar suas capacidades de reflexão, análise e ação é tarefa indissociável da função de intelectuais.
Convém, no entanto, que sejam suficientemen- te precavidos para não cair em simplistas categorizações dualistas do tipo “eles”/“nós”, “bons”/ “maus”; o que levaria implicitamente a construir categorias pouco sérias e reais de “inimigos”/“amigos”. A complexidade da vida humana é algo que algumas óticas pós-modernas estão ajudando a desvelar e a que se deve prestar atenção. Assim, já faz anos que os movimentos feministas deixaram claro que é possível atuar ao mesmo tempo como opressores e oprimidos. É o caso, por exemplo, de homens da classe trabalhadora que sofrem situações de dominação e opressão em seus lugares de trabalho fora do lar, mas que atuam como opressores sobre as mulheres no âmbito familiar.
Nesse sentido, o conceito de “assincronismo” pode vir a ser de grande utilidade. Nem sempre os diferentes grupos e movimentos sociais coincidem entre si em suas reivindicações e/ou nas prioridades pelas quais se organizar para combater formas e situações de dominação. Como destaca Cameron McCarthy (1994, p. 108), existem descontinuidades nas dimensões em torno às quais se agrupar e colaborar, “que derivam do choque de interesses, necessidades e desejos assincrônicos, que separam entre si diversos setores de grupos minoritários e os atores pertencentes a minorias dos da maioria”.
Essa dificuldade para coincidir na definição e concreção do que se considera que é prioritário atender é também sublinhada por Michel Foucault (1979) quando indica que não existe um único eixo em torno do qual todas as relações de poder e dominação, luta e resistência, possam se agrupar, “mas antes uma produção multiforme de relações de dominação que são parcialmente integráveis em estratégias de conjunto” (p. 171). Essas lutas sociais descontínuas costumam acontecer, por sua vez, em âmbitos espaciais locais e regionais, mais do que em âmbitos muito maiores que requerem modalidades de coordenação mais complexas.
Existem múltiplos espaços, formas e momentos nos quais diferentes grupos humanos se comprometem com questões de liberdade, dignidade, justiça, realização pessoal etc.
O exercício da crítica, típico do trabalho intelectual, tem de aprender a levar em consideração essa dinâmica de contradições, tensões e assincronias que se produzem na vida que tem lugar nas instituições escolares, no seio familiar, nos locais de trabalho, espaços de ócio, instituições culturais e políticas. Dessa maneira, é possível que seja mais fácil detectar e fazer frente às situações de injustiça e dominação que sofrem os coletivos sociais com menor poder.
Recuperar para o coletivo docente uma certa capacidade de “agitação social”, submetendo-se sempre à crítica por parte dos coletivos com os quais se encontra comprometido, não equivale a convertê-lo em líder e dirigente nem, evidentemente, nas únicas pessoas capacitadas para orientar ações, mas antes em promotoras, animadoras das vozes dos grupos silenciados e com menor poder. Trata-se de contribuir para que os que integram esses coletivos falem; que reflitam sobre sua situação e sejam eles que decidam e se comprometam com a direção de alternativas de atuação.
Creio que esteja patente uma coincidência do avanço da direita política com um momento de forte crise nos setores intelectuais, que parecem dominados por um certo “pânico” em refletir em voz alta. É como se o medo se tivesse apoderado das mentes das pessoas que têm obrigação moral, espaços e possibilidades de refletir sobre o momento atual. Tem-se a sensação de que se quer renunciar a criar con- dições para fomentar maiores cotas de debate e de análise; em resumo, é como se existisse uma rendição nos setores intelectuais não hegemônicos, quando não também uma certa sensação, que é pior, de se passar para o outro lado, contribuindo para conformar discursos legitimadores dos atuais modos e condições de exploração. Não ajudar expressamente a criar discursos libertadores é uma forma de colaboracionismo oculto com o poder estabelecido.
As professoras e professores intelectuais, a serviço da democracia e da justiça social, têm de contribuir para o estabelecimento de condições para que, nos centros escolares e nas salas de aula, o alunado possa chegar a descobrir o que se esconde por trás dos véus do “saber oficial”; que aspectos não estão sendo levados em consideração, de que ma- neira pode estar manipulada e distorcida a informação com que os meninos e meninas são bombardeados pelos meios de comunicação de massa e demais fontes informativas com as quais entram e, muitas vezes, são forçados a entrar em contato.
Ajudar a desmascarar os pré-julgamentos e estereótipos do conhecimento no qual se apóiam as práticas e discursos classistas, racistas e sexistas é tarefa vinculada à função das professoras e professores como intelectuais. É preciso favorecer que as pessoas possam discutir a aparição de imagens, discursos e narrativas, que nada mais pretendem a não ser fechar as portas ao futuro, impedir, a um importante número de coletivos sociais, de ser.
A educação, uma dimensão da política cultural da sociedade
As questões curriculares, conseqüentemente, devem ser consideradas como mais uma dimensão de um projeto de maior envergadura, como é a política cultural de cada sociedade. Toda proposta curricular implica fazer opções entre as distintas parcelas da realidade, supõe uma seleção cultural que se oferece às novas gerações para facilitar sua socialização, para ajudá-las a compreender o mundo que as rodeia, conhecer sua história, promover valores e utopias. Assim, pois, surge já uma primeira questão: quem são as pessoas que vão participar dessa tomada de decisões a respeito de tal seleção de conteúdos, e por quê?
Todas as investigações centradas nos conteúdos que vêm sendo trabalhados na maioria dos centros de ensino concluem que existe um forte viés nas opções que são promovidas como “exemplificantes”, que são silenciadas realidades daqueles que não estão vinculados a expedientes de poder político, econômico, cultural e religioso, isto é, das etnias e grupos sociais desfavorecidos e marginalizados (das mulheres, da classe trabalhadora, das pessoas de terceira idade, das pessoas pobres, desvalidas, de homossexuais e lésbicas, do mundo rural e marinheiro, dos meninos, meninas e adolescentes etc.) e do Terceiro Mundo. Esse silêncio de coletivos sociais importantes pode ser constatado de modo especial nos materiais didáticos que fecham as propostas curriculares, os livros-texto.
Mas quando se reflete sobre os porquês dessa censura e, até mesmo, manipulação da informação presentes em grande parte dos materiais curriculares que circulam nas instituições escolares, apenas encontramos explicações suficientemente potentes quando expandimos o olhar para fora das paredes das salas de aula e analisamos o que está acontecendo nas demais esferas dessa socieda- de da qual fazem parte.
A estrutura de classes e grupos sociais, os modelos produtivos e de comercialização, de acesso, divisão e organização do trabalho, os processos de acumulação de capital, as políticas econômicas, trabalhistas, sociais e culturais são outros tantos focos de atenção nos quais encontram-se as chaves potentes para entender o que está acontecendo na comunidade e, portanto, os motivos que explicam um sem-número de comportamentos grupais e individuais. É rastreando tramas semelhantes que chegaremos a discernir o sentido da maioria das tarefas escolares que ocupam alunos e alunas, assim como suas reações diante delas. É também nessa rede, da qual faz parte o sistema educativo, que se poderão explicar as atividades, rotinas e tarefas do professorado. Assim, será mais factível, como é urgente neste momento, elaborar linhas de ação com probabilidades de incidir no curso dessa realidade e condicionar o curso atual da história.
A desigualdade na distribuição de recursos educativos e culturais, sinal de sociedades injustas
Chama a atenção que o famoso lema em torno do qual se organiza a Revolução Francesa, “liberdade, igualdade e fraternidade”, que os cidadãos e cidadãs democratas convertem num dos objetivos e premissas sobre os quais construir e governar as sociedades modernas, pareça hoje um tanto antiquado e irreal. Especialmente se levarmos em conta que uma das idéias básicas sobre as quais se assenta a direita política é a da crença na “desigualdade” entre as pessoas.
Um modelo de sociedade conservador, liberal e neoliberal, como o que a estas alturas da história vem se impondo na maioria dos países tecnologicamente mais desenvolvidos, que se assenta em pilares como a defesa do “livre mercado”, precisa propagar filosofias e concepções que apresentem o ser humano isolado socialmente. Dessa maneira, todas as análises levam em consideração unicamente o indivíduo com capacidade para se autoformar, autodeterminar, sem que nada nem ninguém de fora possa influenciar ou condicionar suas possibilidades inatas. Todos seus êxitos e, logicamente, fracassos serão de sua responsabilidade; nada nem ninguém vai condicioná-lo. Todas as maneiras de pensar, a tomada de decisões sociopolíticas serão levadas a termo tendo-se em consideração perspectivas pessoais, individuais, não coletivas. Os direitos que se formu- lam e atendem acabam sendo pensados de modo individualista, do mesmo modo que as análises que são realizadas sobre a realidade.
A aposta e a defesa de filosofias individualistas, da competitividade e esforço pessoal são aspectos indispensáveis para o bom êxito dos modelos econômicos capitalistas e, agora, da globalização dos mercados. Essa ideologia obriga a assumir que as pessoas não precisam se agrupar em função de condições de vida ou valores compartilhados; não se contempla nada com capacidade suficiente para circunscrever cada indivíduo como membro de um grupo; não se deixam ver estratégias para vertebrar modos de atuação mais coletivos com possibilidades de transformar modelos organizativos e estruturas sociais que ocasionam situações de injustiça a grupos sociais concretos e, logicamente, a cada um de seus membros.
Por outro lado, como conseqüência das políticas ultraliberais, insiste-se mais em mostrar as pessoas como consumidoras e em prestar atenção a seus direitos de consumir do que à sua condição de cidadãs e cidadãos; isso acarreta uma redução de suas obrigações e deveres como seres humanos e um menoscabo de suas possibilidades de ação e intervenção. A dimensão consumista implica mover-se apenas num âmbito que permite realizar escolhas entre o que nos oferecem, não no da definição de suas necessidades e da realidade. Restringem-se as ocasiões e níveis de autonomia para as pessoas criarem modelos e orientações sobre como pode ou deve ser sua comunidade; minimizam-se os espaços e oportunidades de participar do estabelecimento de direções de desenvolvimento para a sociedade a que se pertence.
As novas sociedades de consumo estão tratando de transformar as instituições escolares submetendo-as às mesmas leis que regem o mercado de Consumo (Whitty, Edwards e Gewirtz, 1993). Pretende-se que as ofertas que os centros docentes realizem sejam feitas para satisfazer as demandas daqueles que têm possibilidades de formulá-las, os grupos empresariais. Nesse sentido, não podemos deixar de lado a existência de um mercado em que a manipulação da informação desempenha um im- portante papel. A informação é na atualidade um dos poderes mais decisivos, daí o grande interesse e a luta por obter o controle das comunicações, por possuir jornais, emissoras de rádio e televisão, redes informáticas etc. É sobre a base desse controle e manipulação da informação que podemos compreender que tanto as famílias como o próprio alu- nado sintam maior urgência por determinados conhecimentos e habilidades que, afirma-se, facilitam o acesso a empregos e estão mais diretamente vinculados a saídas para o trabalho, e, o que é pior, cheguem a considerar inúteis ou de escasso interesse conteúdos culturais e valores relacionados à compreensão da realidade, da justiça, da solidariedade e democracia.
O sistema educativo, portanto, aparece como algo a consumir, como a via para obter credenciais que, no futuro, facilitem entrar na demanda por trabalhos e salários, que permitam participar das escassas possibilidades de mobilidade social; não é concebido como um conjunto de instituições coadjuvantes na conquista de maiores cotas de justiça social, na luta contra a desigualdade e a opressão. Creio que um dos grandes perigos para nossas sociedades está na maneira como se obscurecem o sentido e a finalidade do sistema educativo.
Não obstante, como aponta R. W. Connel (1993), temos três razões para considerar a existência de um forte nexo de união entre os sistemas educativos e a conquista de maiores níveis de justiça social.
1. O sistema educativo é um dos maiores ativos públicos. É uma das maiores empresas em qualquer economia moderna. Para nos convencermos de que é uma das empresas mais importantes, basta pensarmos nas cifras bilionárias que manejam os ministérios da educação e da ciência da maioria dos países. Dado que se trata de uma empresa pública, é lógico perguntar quem obtém a maioria dos benefícios. As análises quantitativas revelam rapidamente uma forte desigualdade nessa distribuição de recursos e benefícios. Quando nos detemos em comprovar as formas que assume a distribuição dos alunos no sistema educativo, as formas piramidais se impõem (há muitas alunas e alunos nos níveis iniciais e, à medida que ascendemos no sistema educativo, vamos encontrando cada vez menos). Os piores resultados, já o sabemos, são dos meninos e meninas das classes trabalhadores, da etnia cigana, dos núcleos rurais mais desfavorecidos etc.
2. O sistema educativo, atualmente, não apenas é um dos principais ativos públicos, como também é previsível que o seja ainda mais no futuro. Convém ter presente que o conhecimento especializado tornou-se mais um dos componentes do sistema de produção e comercialização.
Atualmente, é no âmbito do sistema educativo que se dão as principais condições para a investigação e a promoção de inovações tecnológicas. Isso se comprova facilmente quando vemos, por exemplo, os fortes vínculos que se começaram a estabelecer entre o mundo empresarial e as universidades.
Viver numa sociedade democrática implica que os fundos públicos redundem em benefício de todas as pessoas e não somente de algumas poucas; significa que, nessas investigações custeadas com dinheiro público, os distintos grupos sociais devem ter parti- cipação, especialmente no estabelecimento de linhas prioritárias e urgentes de investigação; em outras palavras, os diferentes grupos e coletivos sociais têm de dispor de canais para participar da definição dos problemas atuais e da determinação de quais dentre eles urge resolver de maneira mais peremptória. Não é aceitável que todo o sistema público educativo se mova apenas ao ritmo e na direção que os grupos sociais com maior poder econômico e político decidem. Uma boa prova dessa disfuncionalidade está no fato de que a investigação de que os grupos empresariais privados necessitam está sendo levada a cabo, em grande parte, pelas universidades públicas e institutos de pesquisa financiados com fundos públicos.
Esse conhecimento que os sistemas educativos constroem e distribuem não apenas desempenha um papel importante na melhoria da produção e na expansão de mercados, mas também na estratificação social e, portanto, na manutenção de hierarquias sociais. Não esqueçamos que vivemos num mo- delo de sociedade no qual o credencialismo é uma de suas marcas idiossincráticas. O número de títulos profissionais alcançados e o prestígio da instituição que os expede decidem em grande medida as possibilidades de trabalho e a circunscrição a uma determinada classe e coletivo social.
Nesse sentido, é curioso como está sendo produzindo um maior crescimento da iniciativa privada em todos os níveis do sistema educativo (desde a educação infantil e primária até a própria universidade), mas com dinheiro público. Desde a década de 70, e em especial na de 80, a parcela orçamentária do Estado e das comunidades autônomas destinada às instituições escolares privadas não pára de crescer.
Os sistemas educativos distribuem oportunidades de participação e consumo nos atuais sistemas produtivos, bem como moldam os possíveis modelos de sociedade do futuro. Preocupar-se com uma maior democratização, participação e eqüidade para o futuro significa construir a partir de hoje instituições escolares que preparem esses pilares de apoio.
3. A terceira razão para se preocupar com o sistema educativo, segundo R. W. Connel, estaria na concepção do que é educar que essa sociedade concreta à qual nos refiramos defende em cada momento histórico.
Educar é uma tarefa moral, uma vez que implica levar em consideração dimensões morais. O ensino e a aprendizagem, como práticas sociais, sempre implicam questões acerca de propósitos e critérios para a ação (sejam ou não compartilhados), decisões sobre a aplicação de recursos (incluindo autoridade e conhecimento) e acerca de responsabilidades e conseqüências dessas ações. Essas implicações nunca podem ser eludidas, não é possível evitar esse tipo de questão. O fato de que não estejamos conscientes delas não significa que essas dimensões morais tenham sido relegadas; pelo contrário, tal como demonstram os estudos sobre o currículo oculto (Torres Santomé, 1996), não é difícil que, inclusive por não lhes prestar uma aten- ção explícita, estejamos participando, colaborando, na perpetuação de comportamentos morais que de maneira consciente repudiamos (autoritarismo, acriticismo, egoísmo, individualismo, falta de solidariedade, fanatismo, dogmatismo etc.).
No entanto, toda uma grande cultura conservadora pretende reduzir essas questões ao silêncio, criando estratégias e recursos didáticos que incorporam esses valores previamente decididos pelos grupos de poder mais conservadores e, ao mesmo tempo, tratando de despistar o professorado instando-o a que se ocupe, por exemplo, de tarefas que o impedem de levar em consideração esse tipo de elementos, tal como vem sucedendo nos últimos anos. Ele é forçado a dedicar cada vez mais tempo a questões burocráticas; reclamam dele esboços de projetos curriculares de centro educacional e de sala de aula, mas sem estabelecer condições que facilitem esse trabalho; pretende-se convencê-lo de que o mais importante é seqüencializar conteúdos já definidos e, o que é mais curioso, já hierarquizados pelos materiais curriculares mais dominantes, os livros-texto; perseguem-no com questões de disciplina e estratégias para “acalmar os estudantes”; sugerem-lhe que faça mais e mais avaliações e controles; enviam-lhe abundante legislação com terminologias constantemente renovadas etc.
Para a reprodução das atuais ideologias individualistas e meritocráticas, é preciso que cada uma das pessoas que compartilham um determinado espaço territorial seja convencida de tais valores, para o qual os que detêm o poder se vêem na necessidade de gerar uma cultura que sirva para coesioná-las e facilitar um grau importante de estabilidade social. Daí a pretensão que caracteriza os grupos hegemônicos conservadores e liberais de estabelecer e controlar conteúdos culturais obrigatórios que sirvam para reforçar a ideologia dominante. A busca de um “cânone” cultural para oferecer como legítimo, sem possibilidades de submeter à discussão e crítica, converte-se em estratégia indispensável para a perpetuação das condições estruturais que reforçam seu poder e hegemonia.
Portanto, falar e intervir no mundo da educação implica inevitavelmente considerar dimensões de justiça social.
No momento de destinar recursos ao âmbito educativo (dinheiro, pessoal, edifícios, recursos didáticos etc.), a comunidade e aqueles que, em cada momento, têm responsabilidades políticas enfrentam-se em dilemas de partilha e distribuição, na criação de condições que influirão decisivamente para tornar realidade ou não o ideal democrático da igualdade de oportunidades.
É óbvio que uma sociedade que distribui mal seus recursos está favorecendo mais a determinados coletivos sociais do que a outros.
As análises que vêm sendo efetuadas num número muito importante de países não cessam de colocar em relevo que alguns grupos sociais recebem mais apoio do que outros. As denúncias de imperialismo e colonização, classismo, racismo e sexismo no âmbito educativo são contínuas. No Estado espanhol é urgente e obrigatório enfatizar concretamente a marginalização racista que um po- vo como o cigano está sofrendo e suportando. Esse é um tema que apenas começou a dar passos, com exceção de alguns coletivos docentes que têm um contato mais direto e cotidiano com pessoas dessa etnia. Na prática, o mundo oficial, da administração, continua sem prestar-lhe a devida atenção.
Dimensões da discriminação e do racismo na educação
Vivemos numa sociedade na qual, continuamente, um enorme volume de publicações e emissões dos meios de comunicação de massa nos bombardeiam tratando de nos informar e de nos fazer participar da realidade; entre suas finalidades está a de levar suas consumidoras e consumidores a interpretar de uma maneira “correta” tudo que acontece. É através da imprensa, do rádio e da televisão que nos inteiramos de catástrofes, de fatos e acontecimentos cotidianos, de façanhas, descobrimentos etc., mas sempre de uma maneira seletiva. Os meios de comunicação de massa “filtram as realidades” de acordo com os interesses dos que detêm sua propriedade e controle.
Nessa “realidade construída”, os atores e atrizes são desenhados seletivamente, de tal forma que as minorias e grupos sociais sem poder acabam sempre levando a pior parte. As tentativas de silenciar “o diferente” e minoritário, ou mesmo optar por convertê-lo em algo disparatado podem ser facilmente constatadas. Mas nos casos em que essas realidades não podem ser escondidas, a opção mais usual é reelaborá-las, “reinterpretá-las” para apresentá-los como culpáveis pelos seus próprios problemas e até daqueles que ocasionam a outros grupos sociais majoritários e/ou com maior poder. Tratar de demonstrar, primeiramente, que suas condutas são “inadequadas” e, depois, procurar explicar que são conseqüência de condicionamentos inatos (sobre os quais os seres humanos não têm possibilidade de controle), de aspirações inadequadas às suas capacidades naturais ou são fruto de uma vontade de continuar aferrando-se a alguma de suas tradições “defasadas” etc. Numa palavra, recorre se a estratégias de “naturalização” das situações de injustiça, o que na atualidade é favorecido pela hegemonia das ideologias do individualismo e que, obviamente, afeta também a maneira de realizar muitas das análises sobre o que acontece no sistema escolar.
Assim, quando se fala do fracasso e do êxito escolar, de problemas disciplinares nas salas de aula, do que o alunado sabe ou desconhece, a unidade de análise é a pessoa considerada individualmente, e o discurso utilizado tratará também de deixar cla- ras as responsabilidades pessoais, individuais. Um exemplo disso, encontramos no difundido livro de Allan Bloom, The closing of the american mind (1987), em que, a propósito do sistema político dos Estados Unidos da América, destaca que “classe social, raça, religião, origem nacional ou cultura desaparecem ou chegam a ser algo sem interesse quando são contemplados à luz dos direitos natu- rais, que outorgam aos seres humanos interesses comuns e os convertem realmente em irmãos” (p. 27). Frase que contém implicitamente uma aposta na meritocracia como filosofia de vida. De modo semelhante, podemos explicar a atualidade de nu- merosas investigações que pretendem medir as ca- pacidades mentais das pessoas, por exemplo, o quo- ciente intelectual, para responsabilizá-las de modo individual pelos seus feitos.
O êxito e as possibilidades de promoção são vistos como atos de competitividade entre pessoas que, mediante o esforço individual e suas capacidades naturais inatas, alcançam méritos com os quais concorrer e demandar acesso a privilégios sociais de maneira também individual.
Por outro lado, não convém cair em simplificações no momento de analisar e tratar de questões de racismo e de discriminação, já que nem todas as pessoas que compartilham alguma das marcas idiossincráticas de uma raça ou etnia sem poder sofrerão com a mesma intensidade as situações de opressão. Pode acontecer, até mesmo, que alguns dos membros de um grupo social marginalizado cheguem a ser muito respeitados e aceitos pelos grupos dominantes.
Não poderemos compreender bem os problemas raciais se não contemplarmos as dinâmicas de classe e gênero que interagem em seu interior. É óbvio, por exemplo, que ser uma mulher cigana dedicada a tarefas domésticas e familiares é difere te de ser uma mulher cigana que trabalha e triunfa no mundo do espetáculo, da televisão ou do cinema; ou ser um homem cigano dedicado a catar papelão de ser um ancião patriarca ou desempenhar outro trabalho artístico ou profissional de maior prestígio. Em nossas análises e estratégias de intervenção em relação a qualquer coletivo social, é preciso levar em consideração também essas variáveis. As pessoas constroem esquemas conceituais através dos quais sua experiência cobra sentido, analisam e valoram as situações nas quais se vêem envolvidas, em resumo, percebem a realidade. Por conseguinte, qualquer evento no qual se vejam envolvidas terá um significado específico dependendo da raça a que pertençam, da classe social, do gênero, da idade, do território em que vivem etc. Tudo isso obriga a que, nas propostas de trabalho para as salas de aula e centros de ensino, se preste atenção a tais dimensões no momento de ponderar o significado ou relevância das tarefas que se planejam e se executam.
Neste ponto, encontramos já duas implicações para o trabalho nas aulas:
1. Tudo o que se programe como tarefa escolar, como proposta de trabalho curricular, tem de tornar visível suas conexões com as experiências cotidianas e significativas para o coletivo estudantil ao qual é oferecido. É necessário que se permita que os problemas, preocupações, aspirações e interesses do alunado sejam acolhidos.
2. Toda proposta curricular tem de estar apoiada na cultura de procedência do alunado. E quando falamos de cultura de origem não é como conceito abstrato sem maior significado, mas sim estamos nos referindo aos “diferentes e dinâmicos estilos de vida de sociedades e grupos humanos e às redes de significados que as pessoas e grupos usam para construir seus significados e comunicar-se entre si” (Hall, 1992, p. 10).
Conteúdos culturais dos currículos e reconstrução de identidades sociais
O problema das escolas tradicionais, apesar da forte ênfase nos conteúdos culturais apresentados em pacotes disciplinares, em forma de matérias, é que não conseguem fazer que o alunado seja capaz de ver esses conteúdos como parte de seu próprio mundo. A física, a química, a história, a gramática, a educação física, a matemática são dificilmente visíveis; conseqüentemente, o que se trabalha nas salas de aulas, para a maioria de nossos estudantes, existe apenas como “estratégia” para enfastiá-los, para que possam passar de curso a curso, com a esperança de obter um título. A escola aparece como o reino da artificialidade, um espaço em que regem determinadas normas, fala-se de uma manei- ra peculiar e onde é necessário realizar determinadas rotinas, que servem somente para poder obter felicitações ou sanções por parte do professorado e mesmo de suas próprias famílias, mas a coisa só vai até aí. É muito difícil estabelecer laços de conexão entre os blocos de conteúdo dos quais se fala nas aulas, entre as tarefas escolares e a vida real, os problemas e realidades mais cotidianas.
Se há uma crítica comum e reiterada ao longo da história das instituições educativas é a de selecionar, organizar e trabalhar com conteúdos culturais pouco relevantes, de forma nada motivadora para o alunado e, portanto, perdendo o contato com a realidade em que se situam tais atividades docentes. As situações e problemas da vida diária, as preocupações pessoais, ficam fora das paredes das salas de aulas e dos centros de ensino em numerosas ocasiões.
Não é raro que o currículo tradicional acabe mostrando uma notável semelhança com alguns jogos de perguntas e respostas sobre assuntos triviais ou concursos de televisão de cunho nominalista. Competições nas quais, para obter êxito, basta ser capaz de recordar pequenos fragmentos de informação sem maior aprofundamento e, o que é mais grave, sem a devida compreensão dos conteúdos que são verbalizados. Apenas é preciso saber aparentar que se entende aquilo que se pronuncia, embora a realidade seja outra.
Educar equivale a socializar os alunos e alunas, torná-los participantes do legado cultural da sociedade da qual são membros e dos principais objetivos, problemas e peculiaridades do resto da humanidade. A compreensão e a reflexão a respeito do que se trabalha, é óbvio dizer, é imprescindível. Mas, do mesmo modo, é indispensável ter em conta que contribuir para uma compreensão crítica da realidade obriga a assumir que quase todas as matérias e temas tem dimensões controversas, questões sem resolver. Essas perspectivas conflitivas existem paralelamente às diferentes opiniões, valores, prioridades e interesses patentes e ocultos em toda a comunidade. Isso pode afetar questões como as seguintes:
> a seleção e/ou definição de um problema a ser resolvido;
> a análise de suas causas, prognóstico e conseqüências etc.;
> as ações, soluções e decisões que se propugnam;
> por quem, quando, como, onde serão tomadas essas decisões corretoras ou resolutivas etc.
Tentar preservar o alunado das dimensões controvertidas da realidade equivale a introduzi-lo num limbo, desligá-lo do mundo real.
Evidentemente, nessa tarefa, os recursos didáticos através dos quais se veiculam conteúdos culturais (livros-texto ou outro tipo de fontes de informação: monografias científicas, revistas especializadas, dicionários, documentários, vídeos, software etc.) desempenham um papel crucial. O valor e o rigor não será o mesmo para todos. Uma prova do que dissemos já encontramos no momento de procurar, nos livros-texto que circulam atualmente nas instituições escolares, a presença de coletivos inteiros, como o povo cigano, e o que se diz deles. Chama poderosamente a atenção a pobreza documental e, o que é pior, a distorção e a manipulação informativa que caracterizam muitas redações que aparecem em tais livros-texto, o recurso ainda dominante nos centros de ensino (Calvo Buezas, 1989; Torres Santomé, 1996a, 1996b).
De qualquer maneira, não gostaria de modo algum de dar a impressão de que assumo que os estudantes e docentes aceitam sem mais nem menos tudo o que aparece nos livros-texto, sem opor resistências, reinterpretar, revisar ou alterar a informação ali contida. Alunas e alunos manifestam resistências, umas intencionadas e outras não, diante de seu conteúdo. Assim, vemos que algumas vezes reinterpretam informação que lhes é apresentada tendo em conta outras informações prévias que possuem ou experimentaram, outras vezes as rejeitam de múltiplas formas, por exemplo, mantendo-se indiferentes.
Repensando a aprendizagem escolar
Em muitas ocasiões, está sendo esquecida a necessidade de reconsiderar a aprendizagem escolar levando em consideração de uma maneira expressa o efeito das transformações estruturais que fragmentam e desorganizam radicalmente a experiência humana (Nixon et al., 1996, p. 29). Ultimamente, a ênfase está sendo posta mais em aspectos economicistas e em considerações a partir de óticas das políticas de mercado, enquanto as preocupações morais e éticas são relegadas. Desse modo, já nem o próprio fracasso escolar é considerado uma falha dos mecanismos de justiça social que toda sociedade democrática tem obrigatoriamente que se impor.
Propor-se a estimular processos de ensino e aprendizagem, tal como é função das instituições docentes, obriga também a não deixar à margem as condições e filosofias subjacentes que caracterizam esses processos. É a partir das finalidades dos centros de ensino, dos objetivos sociais de que estão incumbidos, que se deve questionar o porquê dos conteúdos curriculares que são escolhidos ou promovidos, as formas adotadas para desenvolver os processos de aprendizagem e modelos organizativos coerentes com as dimensões anteriores.
Aprender é desenvolver processos de compreensão sobre a realidade que induzem à participação nela e se originam a partir das tarefas escolares com as quais alunas e alunos se comprometem dia a dia na sala de aula. Aprender é participar num clima de sala de aula que incita quem ali participa a entrar em situações de diálogo e cooperação, servindo-se dos recursos materiais adequados para chegar a maiores níveis de compreensão das situações sociais nas quais participa e convive. Em tal concepção de aprendizagem, é óbvio que não é apenas às peculiaridades psicológicas de cada pessoa a que se deve recorrer para obter informação a respeito da qualidade dos processos de ensino e aprendizagem. São também, em meu modo de ver, mais decisivos os valores éticos e morais, compartilhados de maneira reflexiva e explícita, que servem de guia para a criação e avaliação de ambientes educativos.
É imprescindível ter presentes as dimensões morais nas tomadas de decisão sobre os modelos organizativos de sala de aula e de centros educacionais, assim como nos momentos de decidir a respeito das características dos conteúdos e recursos didáticos a empregar, os papéis das figuras docentes e os comportamentos do alunado e, logicamente, das tarefas escolares e procedimentos de avaliação.
Partindo-se da aceitação da importância dessa dimensão filosófica e política no momento de pensar nas estratégias de ensino e aprendizagem, é indiscutível que o trabalho em equipe adquire um significado especial. Este deixa de ser contemplado como algo exclusivamente benéfico a título individual, não apenas pelas habilidades interpessoais e cognitivas que favorece, mas também pelas capacidades de socialização que ajuda a construir (ver Quadro I). São fomentados hábitos de respeito em relação às demais pessoas, de colaboração e de compromisso com ideais coletivos e democráticos que vão além de considerações e sucessos individuais. Colabora-se na conformação de hábitos sociais de participação e crítica, imprescindíveis numa sociedade democrática, justa e solidária.
É com propostas de trabalho planejadas de maneira democrática entre estudantes e docentes, desenvolvidas e avaliadas em equipe, que se contri- bui também para valorar as diferenças pessoais e a diversidade no seio de cada comunidade, assim co- mo entre sociedades e países. Elas devem, por con- seguinte, tornar possível o desenvolvimento de ati- tudes de respeito, tolerância e cooperação.
Conteúdos culturais nas salas de aula num mundo global e solidário
As situações de ensino e aprendizagem nas situações escolares devem facilitar a análise e a compreensão do modo de funcionamento das estruturas sociais que caracterizam e condicionam a vida dos cidadãos e cidadãs. Desse modo, serão assen- tadas as bases que os capacitarão a fazer frente e atuar em defesa de seus legítimos interesses.
Para essa meta, é importante prestar atenção aos conteúdos culturais que serão promovidos nas salas de aula. Esses conteúdos, em teoria, referem-se ao conhecimento, habilidades e aptidões que as pessoas usam para construir e interpretar a vida social. Atualmente, seria muito difícil afirmar que as tarefas escolares com as quais enfrentamos o alunado na sala de aula capacitem-no para refletir e analisar criticamente a sociedade da qual faz parte, preparem-no para intervir e participar dela de maneira mais democrática, responsável e solidária. Dificilmente se pode constatar que os atuais processos de ensino e aprendizagem que têm lugar nos centros escolares sirvam para motivar de cara o alunado a se envolver mais ativamente em processos de transformação social, influir conscientemente em processos tendentes a eliminar situações de opressão. Em muito poucas situações, as alunas e alunos são estimulados a examinar suas pressuposições, valores, a natureza do conhecimento com o qual se defrontam dia a dia nas salas de aula, a ideologia subjacente às distintas formas de construção e transmissão de conhecimento etc.
Uma educação humanística, científica e técnica para uma sociedade pluralista precisa estimular e favorecer uma maior atenção aos produtos culturais de cada sociedade, prestando atenção a suas condições e processos de construção e à forma como são percebidos e valorados, tanto dentro da própria comunidade quanto por outras sociedades. Isso obriga a levar em consideração os pontos de vista dos diferentes grupos culturais, etnias e classes sociais, assim como as variáveis de gênero e idade das pessoas. Dessa maneira, facilita-se que as propostas curriculares sejam coerentes com ideais sociais de justiça, respeito e democracia, assim como se força a reconsideração de algumas das características do que comumente se vem entendendo como qualidade do ensino.
O reconhecimento da diversidade cultural e de sua importância político-moral são pontos de apoio de qualquer luta em favor de uma maior democratização e da garantia de maiores cotas de igualdade social. Mas também é necessário o reconhecimento da realidade híbrida e mestiça da imensa maioria dos povos, nações e estados do mundo.
Prestar atenção, nas instituições escolares, a todas as culturas possíveis, passadas e atuais, a todos os países do planeta, coletivos sociais existentes, produções culturais e científicas, fatos relevantes, aspirações é sinceramente impossível. Portanto, também de uma perspectiva antidiscriminação e de justiça social, é preciso estabelecer alguns cri- térios de seleção dos conteúdos culturais que podem ser incorporados ao trabalho curricular nas salas de aula. Entre os numerosos critérios que podem ser determinados, um que é decisivo é o de prestar mais atenção às culturas e grupos desfavorecidos. Os mais favorecidos já dispõem de uma multiplicidade de canais informativos para se fazerem ver e notar. Num mundo global, convém não esquecer que as condições e a qualidade de vida de todos os povos são e serão num futuro iminente cada vez mais interdependentes. Em muitas ocasiões, as condições de vida de um povo dependem e repercutem sobre as dos demais.
Uma instituição como a escolar, que tem entre suas finalidades principais preparar as novas gerações, precisa obrigatoriamente construir hábitos nos meninos e meninas que lhes permitam levar em consideração outros povos e coletivos sociais nas análises da realidade que levem a cabo e nas tomadas de decisão nas quais se vejam implicados.
Detectar como as narrativas que foram sendo divulgadas e promovidas estavam escritas unicamente a partir das vozes e interesses de uma minoria, portanto, recorrendo a processos de silenciamento, manipulação e deformação, é uma tarefa em que as instituições escolares também têm uma importante missão.
Qualquer leitura atenta da maioria dos manuais escolares que circulam entre o alunado permite constatar processos de censura e deformação de importantes eventos históricos, culturais, científicos e tecnológicos; tanto nas informações referentes às condições de produção de tais fenômenos como em suas interpretações e valorações (Delfattore, 1992). Conseqüentemente, isso significa que no processo de socialização das novas gerações existem sinais de uma certa estafa intelectual e moral que, infelizmente, pode funcionar no futuro como estopim para comportamentos coletivos e individuais de cunho racista, sexista, imperialista, classista etc. É preciso, no entanto, não esquecer que essas peculiaridades de determinada cultura escolar nada mais são do que conseqüência da origem da educação institucionalizada, ou seja, algo consubstancial com uma instituição como a acadêmica, cuja finalidade, até o presente, não foi outra senão preparar as futuras elites, não facilitando, por conseguinte, o acesso e/ou a permanência dos filhos e filhas das classes e grupos sociais populares. Logicamente, essa filosofia continua vigente em muitas práticas na atualidade, o que podemos comprovar na facilidade com que se justifica o atraso escolar dos meninos e meninas do mundo rural e de grupos sociais desfavorecidos. Não deixa de ser curioso que um tema de tanta importância como o do fracasso escolar tenha passado a ser de interesse secundário, de acordo com a maioria das temáticas dos cursos, encontros e conferências dirigidos ao professorado.
Se um observador de fora tratasse de averiguar quais são as preocupações dominantes no sistema educativo espanhol, recorrendo às temáticas escolhidas para a atualização do professorado, poderia chegar à conclusão de que no Estado espanhol não existe fracasso escolar. Por outro lado, chamaria sua atenção o interesse por aprender a avaliar e qualificar com mais precisão, em como hierarquizar uma série de conteúdos disciplinares ao longo de um ciclo escolar, como elaborar Projetos Curriculares de Centro, etc. No entanto, a realidade do fracasso das instituições escolares em suas finalidades formativas é percebida com bastante unanimidade pelos cidadãos e cidadãs.
Convém não deixar à margem a análise das novas formas de desvantagem social, cultural e econômica, especialmente quando informes de instituições como a Caritas evidenciam que em nosso país está crescendo o número de pessoas em situação de pobreza, ou de organismos internacionais que apontam como as distâncias entre grupos sociais são incrementadas; as pessoas pobres o são cada vez mais, e núcleos importantes das classes médias perdem poder e possibilidades a cada dia. Do mesmo modo, é preocupante como a pobreza continua com um processo notável de feminização; são as mulheres que em maior porcentagem vivem em condições de necessidade e pobreza.
Uma importante ajuda na capacitação para compreender esse tipo de situação é a análise e revisão dos conteúdos culturais que são oferecidos como exemplificantes ao alunado.
Todas as disciplinas possuem aspectos em seus conteúdos que permitem prestar atenção às questões de justiça social e diversidade; tanto as chamadas ciências sociais e humanas como as físico-naturais. No fundo, as diferentes disciplinas ou ciências não são outra coisa que a formalização e sistematização dos conhecimentos, habilidades e valores que cada sociedade possui para sobreviver da maneira mais satisfatória possível, para fazer frente aos desafios de seu desenvolvimento e alcançar maiores níveis de eqüidade e justiça. As diferentes disciplinas, através dos tempos e em cada sociedade concreta, variam mais ou menos em função da comunicação que tais povos mantém entre si. Obviamente, em épocas históricas em que a comunicação era mais difícil, cada povo ia gerando formas mais idiossincráticas de resposta às necessidades que detectava. Mas toda sociedade sempre construiu e utilizou conhecimentos de física, química, economia, direito, tecnologia etc. para viver. À medida que os povos se comunicam, intercambiam esses conhecimentos e os conhecimentos adquiridos e reconstruídos vão se organizando para facilitar sua aprendizagem pelas novas gerações. Nessa dinâmica é que também vão surgindo as especialidades e os especialistas.
Se atualmente ainda existem comunidades com as quais as formas de comunicação não são suficientemente fluidas, nessa medida alguns conhecimentos, habilidades e tecnologias aparecem como mais idiossincráticos.
Trabalhar com essa concepção de fundo pressupõe planejar propostas curriculares integradas (Torres Santomé, 1996b), nas quais os estudantes e as estudantes se vejam obrigados a:
> Incorporar uma perspectiva global. Assumir a análise dos contextos socioculturais nos quais se desenvolve sua vida, assim como daqueles das questões e situações que submetam a estudo; atender às dimensões culturais, econômicas, políticas, religiosas, militares, eco- lógicas, de gênero, étnicas, territoriais etc. (ante uma educação mais tradicional em que a descontextualização é uma das peculiaridades da maior parte de tudo que se aprende.)
> Pôr a descoberto as questões de poder implicadas na construção da ciência e as possibilidades de participar de tal processo.
> Deixar patente a participação daqueles que constroem a ciência e o conhecimento; não silenciar quem são para demonstrar a historicidade e condicionantes de tal construção.
> Incorporar a perspectiva histórica, as controvérsias e variações que ocorreram até o momento sobre o fenômeno objeto de estudo; a que se deveram, a quem beneficiavam etc. Incidir, portanto, na provisoriedade do conhecimento.
> Integrar as experiências práticas em âmbitos cada vez mais gerais e integrados.
> Compreender todas as questões que são objeto de estudo e investigação levando em consideração dimensões de justiça e eqüidade. Converter o trabalho escolar em algo que permita pôr em prática e ajudar a compreensão das implicações de diferentes posições éticas e morais.
> Partir da valorização da experiência e do conhecimento do próprio alunado. Facilitar a confrontação de suas convicções e pontos de vistas pessoais com os de outras pessoas.
> Promover a discussão a respeito de diferentes alternativas para resolver problemas e conflitos, assim como dos efeitos colaterais de cada uma das opções.
> Proporcionar possibilidades de avaliação e reflexão das ações, valorações e conclusões que são suscitadas ou nas quais se vêem comprometidos.
> Aprender a comprometer-se com a acei- tação de responsabilidades e a tomada de decisões, a assumir riscos e a aprender com os erros que cometam.
> Potencializar a personalidade específica de cada estudante, seus estilos e características pessoais. Chegar a convencer-se do valor positivo da diversidade pessoal, algo imprescindível para chegar a assumir a de outros povos e culturas.
> Empregar estratégias de ensino e aprendizagem flexíveis e participativas. Aprender num âmbito organizativo flexível, participativo e democrático, no qual se preste especial atenção à integração de estudantes de diferentes grupos étnicos e níveis culturais, de destintas capacidades e níveis de desenvolvimento, no qual as tarefas escolares sejam levadas a cabo em grupos cooperativos de trabalho.
No fundo, trata-se de educar as cidadãs e os cidadãos com um “ceticismo informado” ou, o que é a mesma coisa, com capacidades para o pensamento crítico, como uma das estratégias perante uma sociedade e um mundo no qual os fundamentalismos, o pensamento dogmático, tendem a inundá-lo e a se colocar como único parâmetro a perpetuar.
Pôr em ação essas estratégias nos ajudará na conformação de cinco hábitos mentais que iremos construindo com o trabalho curricular nas salas de aula. Hábitos que ajudarão a obter uma capacitação mais adequada para participar de um mundo em que a diversidade é uma de suas marcas mais peculiares. Procuraremos fazer que as alunas e os alu- nos prestem atenção e se preocupem com:
1. Evidências. Como conhecemos o que conhecemos? Que tipo de evidências consideramos suficientemente boas, válidas?
2. Pontos de vista. Que perspectivas, critérios escutamos, vemos e lemos? Quem são seus autores ou autoras, onde as elaboraram, quais eram suas intenções ou finalidades?
3. Conexões. Como estão relacionadas umas questões com outras? Como se encaixam entre si?
4. Conjecturas. O que acontece se…? Supondo que… Podemos imaginar alternativas?
5. Relevância. Que controvérsias se estabelecem? A quem se presta atenção? (Wood, 1992, p. 172).
Tal clima de aula estará, em meu modo de ver, contribuindo para que o alunado desenvolva uma consciência crítica que lhe permita analisar, valorar e participar de tudo o que acontece e tem a ver com seu entorno sociocultural e político.
Manipulações populistas das filosofias progressistas
Algo que vem adquirindo grande peso em nossa sociedade é o discurso populista. Nele se recorre ao emprego de um vocabulário que faz referência a conceitos muito interessantes e valiosos, mas que são descarregados de significado, desvirtuados, para aparentemente dar a sensação de que se enfrenta uma série de problemas sociais urgentes; mas é só isso, aparência. Temos um exemplo disso nos discursos populistas contra o racismo, a pobreza, o desemprego etc. Neles são nomeadas realidades e direitos como os do povo cigano, da mulheres, da população negra, dos homossexuais e lésbicas etc., mas evitando considerar por que temos de nomeálas, a razão pela qual se presta atenção a dimensões idiossincráticas de etnia, raça, gênero, sexualidade etc. Ocultam-se relações de poder existentes nas sociedades em que convivem esses coletivos que so- frem alguma forma de marginalização, as categorias de classificação, sua valoração e os motivos pelos quais foram sendo construídas essas situações de marginalidade nessa determinada comunidade a que nos referimos.
Evidentemente, essa estratégia de confusão chegou também ao mundo da educação. As administrações educativas, concretamente através das leis que elaboram e dos decretos e normas que as desenvolvem, vêm manejando conceitos que foram construídos por forças sociais progressistas, formulados e reformulados mais de uma vez à medida que eram melhoradas as análises sobre a realidade, mas que agora se esvaziam de seu conteúdo social e, portanto, se despolitizam ou “repolitizam” em sentido inverso, conservador. Conceitos como globalização, interdisciplinariedade, currículo integrado e outros tão vinculados a estes, como socialização, igualdade de oportunidades, democracia escolar, participação e similares, passam a funcionar como vocábulos vazios ou muletas de expressão, sem dar conta de sua carga de significado e das conseqüências de seu uso. Outros, como atenção à diversidade, sofrem um forte reducionismo, deixando-os circunscritos a aspectos de índole exclusivamente pessoal, a dimensões de conduta ou a problemas psicológicos que têm a ver apenas com alguns indivíduos concretos. O mesmo cabe dizer de termos pedagógicos como profissionalização, projeto curricular etc., conceitos para fazer figura, mas não para ser conseqüente com eles e criar as condições administrativas, de trabalho e de formação que possam tornálos realidade na prática cotidiana das salas de aulas e dos centros escolares.
Surgem, inclusive, novas figuras e estruturas profissionais (psicopedagogos e psicopedagogas, orientadores e orientadoras, equipes psicopedagógicas de apoio, de atenção antecipada, de estimulação precoce etc.), mas com uma formação e orientação bastante enviesada: para atender unicamente a aspectos de patologia individual, e não a problemas que afetam coletivos sociais e que requerem prestar atenção a dimensões que condicionam sua vida e, por conseguinte, o aprendizado de cada aluno ou aluna.
O construtivismo como estribilho
Os que promovem as novas ideologias conservadoras não hesitam em tratar de esvaziar e “reorientar” todos aqueles conceitos e filosofias que no momento histórico presente tenham ganhado presença e prestígio. Uma boa mostra disso é seu apoio e promoção dos atuais discursos em defesa do construtivismo, filosofia psicoeducativa que, em suas divulgações pelas instâncias e personalidades vinculadas ao poder, vem se mostrando demasiadamente parcial.
Esse modelo teórico elabora seus argumentos com demasiada ênfase em dimensões individualistas ou excessivamente “universalistas”, abstraindo-se das peculiaridades de cada comunidade e do momento sócio-histórico que está vivendo. Nesses discursos psicológicos, o ser humano aparece confinado à margem de aspectos essenciais, como suas dimensões socioculturais e histórico-geográficas. Ne-les não se trata de pôr em relevo como essas variáveis jogam um papel decisivo na aquisição do conhecimento, do sistema de valores e desenvolvimento de habilidades, tanto em sua seleção como em sua valoração, interpretação e aceitação.
Dificilmente poderíamos nos opor à atual corrente epistemológica que promove que “o conhecimento se constrói”. Mas não deixa de ser chamativo que em muitos momentos esse discurso venha a se esgotar em frases tão simples como uma muleta de expressão ou um cacoete, deixando o aprofundamento de tal filosofia para o leitor ou ouvinte. No Estado espanhol, costuma ser freqüente, especialmente do ponto de vista da psicologia, que a defesa das teses construtivistas entre o coletivo docente acabe se resumindo em alguns slogans com os quais todo o mundo concorda e assume, dada a simplicidade de sua formulação. Ao final, fica apenas a idéia um tanto abstrata de que tudo é questão de “construção”, essa sim revestida com frases e conceitos que gozam de certo prestígio. Sem dúvida, nos momentos da ação prática, muitos professores e professoras sentir-se-ão incapazes de transpor essa filosofia para situações reais nas salas de aula. Todavia, uma análise mais minuciosa e crítica mostrará, com relativa prontidão, que o construtivismo não é algo do qual possamos falar no singular e com o qual concordem todas as pessoas que assim se etiquetam. Existe conflito entre as concepções e explicações subjacentes a tal perspectiva ou âmbito explicativo, como detecta César Coll (1993, p. 239) quando afirma que “por trás do termo ‘construtivismo’ escondem-se interpretações e explicações diversas e nem sempre coincidentes”.
Além disso, não deixa de ser curioso que, depois de muitos anos em que as análises sociológicas estiveram e continuam gozando de importante aceitação no campo do ensino, de repente, muitos dos discursos psicológicos pretendam silenciar essas dimensões e características que foram sendo enfatizadas. As pessoas constroem conhecimentos, mas quais? Quando? Onde? Em que condições? Com que finalidades? A serviço de quem? Promovidos por quem? É em torno de questões semelhantes a essas que o silêncio de muitos construtivistas chama a atenção.
Não costuma ser freqüente que, nos discursos sobre construtivismo, apareçam reflexões a respeito de quem orienta e promove o processo construtivista e em que direção. Portanto, existe o perigo de assumir tacitamente um certo “naturalismo”: que todas as meninas e meninos deixados à sorte constroem de uma maneira adequada.
Nos últimos anos, é visível a impregnação das concepções individualistas em muitos momentos do discurso construtivista psicológico, assim como nas orientações práticas que derivam desse modelo. Um exemplo disso temos no Brasil, no texto que o Ministério da Educação e Cultura divulga sobre “O ensino fundamental: Parâmetros Curriculares Nacionais”. Documento muito impregnado de construtivismo e no qual, no momento de derivar propostas práticas para as aulas, como no que diz respeito às formas de agrupamento do alunado, podemos ler o seguinte:
Devem estar atentos às diferentes formas de agrupamento possíveis segundo uma variedade de aspectos, por exemplo: desempenho diferenciado, desempenho próximo, gênero, afinidades para o trabalho, afinidades afetivas, possibilidade de ajuda, possibilidade de cooperação, ritmo de trabalho etc.
Não existe “o melhor” critério de organização de grupos para uma atividade, é necessário que o professor decida em cada tipo de atividade, em cada momento do processo de ensino e aprendizagem, para aqueles alunos específicos, qual é a melhor forma de organização social.[…]
Os agrupamentos são medidas eficazes para facilitar a individualização do ensino, pois podem ser consideradas as necessidades de cada aluno e garantidas situações adequadas para o desenvolvimento de certas aprendizagens.[…]
É possível pensar em grupos que não sejam estruturados por série e sim por objetivos a serem alcançados, onde a diferenciação entre séries se dê pela exigência adequada ao desempenho de cada um (p. 24).
Em explicações e propostas como as anteriores, penso que se pode constatar o predomínio de uma concepção exclusivamente individualista da aprendizagem. Cada aluno e aluna constrói seu próprio conhecimento, exclusivamente pessoal. Os outros companheiros e companheiras são considerados instrumento ou recurso para favorecer essas aprendizagens em cada pessoa. Não existe uma só linha de argumentação, num tema tão decisivo como o dos agrupamentos do alunado, que finque pé na necessidade de desenvolver a solidariedade entre os que compartilham uma sala de aula ou centro escolar, na exigência de trabalhar em grupo para aprender a colaborar, conhecer as demais pessoas que nos rodeiam, banir pré-julgamentos ou estereótipos sobre aqueles que pertencem a coletivos sociais marginalizados ou a etnias sem poder.
Quando se realiza a enumeração das modalidades de agrupamento de estudantes, isso é feito como se todas tivessem o mesmo valor, como se se tratasse de uma tomada de decisão meramente técnica, para favorecer o potencial inato de cada menino ou menina, para construir um conhecimento pessoal e que, podemos deduzir, terá conseqüências individuais. Esquece-se de mencionar as lutas que o coletivo docente, juntamente com outros coletivos sociais, levou e leva a cabo para contribuir para banir o sexismo promovendo agrupamentos mistos, de meninos e meninas; para favorecer a integração das pessoas com discapacidades, conformando grupos de estudantes de diferentes níveis de capacidades e conhecimentos; para colaborar na luta contra o racismo, sobre a base de agrupar alunas e alunos de diferentes etnias num mesmo grupo; para educar pessoas mais solidárias, fomentando o trabalho em equipe no qual cada estudante se sinta útil aos demais membros etc.
O professorado é muito mais do que promotor de conflitos sociocognitivos e, por conseguinte, precisa deter-se em pensar questões que ultrapassam os aspectos puramente psicológicos, tais como dimensões de valor, justiça, democracia, solidariedade que acompanham a produção e utilização do conhecimento e a tecnologia.
Um “sentido comum”, cuja construção esteve controlada pelos círculos de poder, pelos discursos promovidos por todo um conjunto de intelectuais oficialistas que gozam de todo o tipo de facilidades para aceder aos meios de comunicação e dirigir a produção do conhecimento e tecnologia, pode, deixado a seu livre arbítrio, funcionar em direções reproducionistas. A realidade não costuma adornar-se com etiquetas explicativas, pelo contrário, é imprescindível esforçar-se para revelar seu significado mais autêntico. Convém estar atento para que o discurso “construtivista” não acabe convertido em etiqueta que dissimule posições “reproducionistas”, mas com roupagens e máscaras que dificultem captar sua manipulação a serviço dos mesmos interesses dos de sempre.
É preciso não esquecer que em cada época, como se evidencia a partir da filosofia da ciência (Kuhn, 1980; Toulmin, 1977; Lakatos, 1982) e ultimamente no que se vem conceituando como pós- modernidade (Foucault, 1990; Feyerabend, 1984; Harding, 1993), toda uma série de condições, influências, pressões e normas vão tratar de avaliar a validade dos conhecimentos, assim como favorecer e obstaculizar a aparição, divulgação e utilização de determinados saberes e tecnologias.
Na ciência, a verdade está em disputa com muitíssima freqüência, assim como seus fundamentos metodológicos. Por conseguinte, podemos afirmar que são distintas condições sociais, econômicas, políticas, culturais, militares e religiosas, assim como os conflitos de interesse entre os desafios que vão se colocando para os distintos grupos sociais, etnias, gêneros que entram em jogo na construção de conceitos, categorias, procedimentos, metodologias, valores e, portanto, nas soluções que as ciências e os diferentes saberes vão poder enfrentar.
É imprescindível dar-se conta de que a consciência das pessoas historiadoras, cientistas, artistas, políticas, literatas está sempre condicionada pelo ambiente em que vivem, pelas práticas nas quais se vêem envolvidas, pelas normas que possibilitam o acesso a postos de trabalho e as condições de sua realização, pelos sistemas de valores, modos de perceber, saberes e racionalidades em que se apóiam.
Convém ter certa atitude de dúvida diante de teorias que aparecem com demasiada arrogância, escudando-se num excesso de frases feitas e slogans que funcionam para despolitizar realidades sociais conflitivas e acabam por se transformar em escudos protetores ante análises e propostas mais libertadoras, minuciosas e críticas.
Com muita freqüência, esquece-se que, também mediante processos discursivos e retóricos, contribui-se para dar forma ao pensamento hegemônico, à criação de um “sentido comum” que coopera para apresentar e pensar como normal, lógico, natural e único o que não passa de um modelo concreto de atuar, governar, pensar etc., entre outros possíveis. Isso já foi evidenciado por Michel Foucault (1990b, p. 198) quando, ao se referir às “práticas discursivas” deixa claro que estão sujeitas a “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, numa dada época e para uma dada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa”; ou seja, condicionam e limitam os temas a respeito dos quais se pode falar, analisar, classificar, explicar, nomear; promovem um leque limitado de significados.
É também mediante práticas discursivas que conceitos que até um determinado momento têm um determinado significado, uma vez que são frutos de outros discursos que lhes conferiam esse significado, ao intercalar-se em outras práticas diferentes, podem chegar a alterar por completo seu significado ou ficar reduzidos a meros slogans ou frases-fórmula. Em tais slogans “sua simplicidade proporciona uma embalagem de idéias com traçado verdadeiramente claro e sólido. Eles comunicam paradigmas, idéias modelo que podem ser aplicadas a novas ‘instâncias’, mas distanciando-se de seus referentes originais” (Fowler, 1991, p. 177-179).
Não podemos esquecer que a instituição escolar, através de suas práticas e ênfases, é coadjuvante na construção das maneiras de pensar, atuar, perceber e falar a respeito da realidade, do mundo de cada estudante e, por isso mesmo, de cada cidadã e cidadão. Na aprendizagem de matérias como história, matemática, física, geografia, literatura, idiomas etc., “constroem-se” possibilidades de perceber, interpretar e valorar a realidade; fomentam-se atitudes perante o mundo que nos rodeia e do qual temos alguma noção; influi-se na conformação de sentimentos e expectativas perante as pessoas com as quais convivemos e compartilhamos este planeta.
O forte peso do conservadorismo atual contribui para que as questões morais, políticas e socio-econômicas sejam aspectos que tendem a desaparecer do vocabulário e, portanto, da práxis curricular. Ainda se pode constatar o medo de reconhecer e assumir que educar é uma ação política, não um trabalho meramente técnico. Os discursos profissionalizadores, curiosamente, estão sendo utilizados como disfarce para despolitizar e desfigurar grande parte do trabalho sociocultural e educativo. Trata-se de discursos nos quais se faz notar que a única coisa importante são as preocupações por eficiência, controle, gestão, objetividade e “neutralidade”, o que é coerente com os discursos hegemônicos, oficiais, sobre o fim das ideologias.
É preciso recuperar a capacidade de contextualizar e historizar nossos discursos e práticas. Urge voltar a retomar algo que já parece um slogan vazio: conectar a instituição escolar com o meio. Do contrário, corremos o risco de construir um currículo fundamentalista, uma proposta de trabalho na qual se dá uma seleção fechada de conteúdos culturais a serem trabalhados nas classes, possibilita-se o acesso a uma única interpretação desses conteúdos culturais, uma só valoração e uma única resposta verdadeira.
Se as opções conservadoras continuam ganhando cotas de poder, há um risco importante de que os currículos fundamentalistas venham a se ver ainda mais favorecidos. Currículos cujas diferenças estarão no viés que desejam “vigiar” com maior atenção; é previsível que apareçam projetos curriculares obcecados por determinadas opções religiosas, econômicas (para promover um determinado modelo produtivo e de relações de trabalho de interesse para os grupos empresariais no poder), políticas, racistas, sexistas etc. Estamos cada vez mais diante de instituições de ensino que apenas vendem o “conhecimento oficial” (Apple, 1993). O que parece imperar é uma cultura da “objetividade”, entendida como uniformismo, como ataque à diversidade, com a finalidade de favorecer a articulação de sociedades “mono”: monoculturais, monolingüísticas, monoétnicas, monoideológicas etc. Pretende-se negar a diversidade para impor uma única cultura que se anuncia e se faz pública como “comum”, “consensual”, “valiosa” e “histórica (a de sempre)”.
Os coletivos de intelectuais, pesquisadoras e pesquisadores, artistas e docentes têm uma importante tarefa a desempenhar, ajudando a construir, a voltar a interpretar a história das sociedades levando em consideração as percepções e interesses daqueles que ficaram à margem e sofreram a história.
Apostar na democracia obriga a que conceitos como “justiça social”, “responsabilidade ética”, “participação”, “igualdade” não se transformem em fórmulas vazias, mas em modos de vida. Assim, a pedagogia tem uma função dual: ajudar a proporcionar os meios através dos quais os coletivos sociais oprimidos chegam a tomar consciência de sua opressão e servir como instrumento mediante o qual es- sas mulheres e homens lutem para encontrar métodos de transformação da realidade (Trend, 1995, p. 148).
É imprescindível estar atento a todo momento para que esse trabalho de ação social em prol de maiores cotas de democracia e justiça social se mantenha vinculado aos demais movimentos sociais que estão comprometidos nessa mesma direção de redistribuição de poder e dos recursos existentes na comunidade; movimentos que procuram em todos os momentos tornar viável uma autêntica e informada participação de todas as cidadãs e cidadãos nas tomadas de decisão que servem para configurar e determinar a sociedade. Isso está ficando cada vez mais difícil, dado o forte individualismo que impera nas sociedades pós-modernas e da informação que, por sua vez, facilita a reaparição de um notável culto às lideranças carismáticas. Uma prova disso, e na verdade preocupante, é a apatia para com o debate que surge no próprio seio de estruturas como partidos políticos e sindicatos e que tem como resultado o afloramento de apostas por uma espécie de “cesarismo”. Diante de um importante grau de atrofia dos mecanismos de participação e regulação democrática da vida no interior de muitos partidos políticos ou mesmo de governos, a figura do dirigente capaz de tomar as rédeas e o controle adquire um peso desmedido.
A constante denúncia de apatia com a qual se etiqueta a imensa maioria da população das sociedades pós-industriais, fruto das experiências pseudodemocráticas nas quais se encontram implicadas, corre o risco de servir de situação embrionária de novos fascismos ou autocracias mais invisíveis; nestas a democracia fica minimizada numas tantas formas e ritos externos, mas sem conteúdo. Os espaços de participação e controle democráticos estão tramados por figuras representativas do mundo econômico, militar e líderes do governo. Um panorama semelhante é também percebido por Paulo Flores D’Arcais (1996) quando escreve:
Estes são os dois modelos que aparecem no moderno obscurecer-se da promessa democrática: a partitocracia de partidos-máquina, cada vez mais parecidos entre si, acompanhados de seus respectivos engenheiros do consenso e o gigantismo de aparatos burocráticos e auto-referenciais. E o populismo taumatúrgico, com seus improváveis eleitos pelo senhor, seus insolentes vendedores de felicidade e o néscio estrondo do aplauso forçado. Os dois modelos não apenas não se excluem, como antes parecem celebrar em desconexa mestiçagem as bacanais pós-modernas em versão caótica. E assim em todo o mundo (p. 59-60).
Diante de uma perspectiva tão ameaçadora, torna-se prioritário recuperar para o maior número possível de cidadãos e cidadãs e, evidentemente, para o trabalho docente os papéis de ativistas contra-hegemônicos com fé no futuro; com suficientes doses de utopia entremeadas de realismo para configurar um futuro mais justo, democrático, numa palavra: humano.
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JURJO TORRES SANTOMÉ é Catedrático de Didática e Organização Escolar na Universidade da Coruña, Espanha. Trabalha com temas relativos a Sociologia da Educação, Política Curricular e Currículo Integrado. Entre suas obras se destacam: Globalización e interdisciplinariedad: el curriculum integrado, Madrid, Morata, 1996, 2a ed.; El curriculum oculto, Madrid, Morata, 1991.
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Política educativa, multiculturalismo e práticas culturais democráticas nas salas de aula
( pdf)
Reformas educativas como impulso a la consolidación del neoliberalismo y neocolonialismo
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Jurjo Torres Santomé
Conferencia impartida en la Maestria en Educación Comparada, organizada por el Ministerio del Poder Popular para la Educación Universitaria, del Gobierno Bolivariano de Venezuela.
Caracas, Venezuela. 14 de Abril, 2013
PROPUESTA DE DECÁLOGO PARA INSTITUCIONES ESCOLARES DEL SIGLO XXI
Un espacio educativo capaz de hacer frente a las nuevas demandas de las sociedades multiculturales y respetuosas con la diversidad, a mi modo de ver debe presentar los siguientes rasgos:
1. Estudiantes, docentes, familias y todos aquellos colectivos sociales comprometidos con la educación, son siempre bien acogidos y aceptados. Cada persona es aceptada en su individualidad y con su específica personalidad y cultura. Existe plena consciencia de que todas las personas que conviven y trabajan en ese ambiente simultáneamente enseñan y aprenden.
2. Una comunidad de aprendizaje donde siempre reinan altas expectativas de éxito acerca de las posibilidades de cada estudiante; lo que se traduce, entre otras cosas, en un clima de respeto, de solidaridad y de preocupación y compromiso con el otro.
3. Sus diferentes espacios (aulas, laboratorios, pasillos, salas, comedores, patios y campos de deportes) son agradables, poseen una buena iluminación, una decoración respetuosa con la diversidad, disponen de recursos didácticos suficientes, variados y de calidad. Son espacios que invitan a permanecer y a trabajar.
4. Las metodologías didácticas que allí rigen son activas, basadas en la investigación. Los distintos ambientes del centro son interesantes y relevantes, y estimulan a cada una de las personas que allí interaccionan a tomar iniciativas y a comprometerse en procesos de enseñanza y aprendizaje.
5. Aquí los errores están permitidos y son motor del aprendizaje, pues se utilizan como feedback para, al menor indicio, reconstruir los pasos dados y revisar donde están las verdaderas dificultades y obstáculos con los que se encuentra cada estudiante.
6. La libertad, la curiosidad, las emociones y la diversión se aceptan y se consideran características idiosincrásicas de la vida en este espacio de los aprendizajes. Estas peculiaridades se aprovechan como estrategias que permiten estimular, aprender y evaluar aprendizajes.
7. La democracia es el modelo que rige la vida de esta comunidad de aprendizajes. En este espacio el alumnado, sus familias y los demás colectivos vecinales tienen voz y, por tanto, deciden y asumen compromisos. Reina la tolerancia, pero nunca la indiferencia.
8. Se fomenta el pensamiento crítico y el ponerse en el lugar del otro en todos los contenidos curriculares con los que se trabaja. Se presta atención a que todas las culturas tradicionalmente silenciadas (mujeres, etnias sin poder, clases trabajadoras, culturas infantiles y juveniles, opciones sexuales diferentes a la heterosexualidad, concepciones ateas y religiosas distintas al cristianismo, ecologismo, …) estén presentes en todos los recursos didácticos de todas las disciplinas y/o núcleos de enseñanza y aprendizaje. En estas instituciones educativas se tratan obligatoriamente los temas social, política y científicamente conflictivos.
9. Aquí, la evaluación es democrática y se concibe como un elemento más de la cadena de los aprendizajes; como uno de los momentos privilegiados para la reflexión y toma de decisiones que posibilita reconducir cuanto antes los procesos de enseñanza y aprendizaje.
10. La vida en el centro escolar es generadora de sueños y no de sueño.
TORRES SANTOMÉ, Jurjo (2011). La justicia curricular. El caballo de Troya de la cultura escolar. Madrid. Morata, págs. 293 – 294.
Cómo denominaremos a un sistema político que:
* Cercena muy gravemente el derecho de reunión, de huelga y de manifestación.
(Nota: Muy diferente es el caso de las convocatorias del Partido Popular y de la Conferencia Episcopal llamando a adultos, jóvenes, niños y niñas y bebés a meditar y a «reflexionar en voz alta» en las calles y a celebrar mega-misas en las plazas. Esto se llama acudir a la llamada del Pastor de las Almas, o sea, comportarse «como Dios manda»).
* Acusa/penaliza a las madres y padres que dejan que sus hijos e hijas se reúnan, voten, convoquen huelgas y participen en manifestaciones de manera democrática y legal.
* Pretende prohibir o censurar el tipo de informaciones, videos y fotos de lo que acontece en tales actos, en especial de aquéllas en las que aparecen la policía, o sea, quienes tienen el mandato de proteger a todas las personas que se manifiestan legalmente.
Es esta lógica de recorte de las libertades, de la democracia, lo que también justifica la eliminación de la asignatura «Educación para la Ciudadanía y los Derechos Humanos»; de este modo el alumnado tampoco podrá fácilmente acceder a conocer la «Convención sobre los Derechos de la Infancia» (ONU, 1989); seguirá ignorando Derechos vigentes como, por ejemplo, los siguientes:
- «Artículo 13.1. El niño tendrá derecho a la libertad de expresión; ese derecho incluirá la libertad de buscar, recibir y difundir informaciones e ideas de todo tipo, sin consideración de fronteras, ya sea oralmente, por escrito o impresas, en forma artística o por cualquier otro medio elegido por el niño.
- Artículo 14.1. Los Estados Partes respetarán el derecho del niño a la libertad de pensamiento, de conciencia y de religión.
- Artículo 15.1. Los Estados Partes reconocen los derechos del niño a la libertad de asociación y a la libertad de celebrar reuniones pacíficas.»
Tampoco podrán aprender en las instituciones escolares qué es una Constitución, porqué se redacta y aprueba, quiénes participan en su elaboración y porqué, cómo se modifican, a qué obligan, …
¿Será por este tipo de razones que a quienes, respetando la actual Constitución Española, se manifiestan, convocan y hacen huelgas democráticas e informan de los desmanes de la policía les llaman «anti-sistema»?
Yo propongo que un posible nombre para este modelo político sea: «Realdictamocracilla».
Este mes de Noviembre se cumplen 10 años de la terrible catástrofe del hundimiento del petrolero Prestige frente a las costas gallegas. Una inmensa marea negra de chapapote en aquellos días arrasó la costa gallega, parte de la de Portugal, de Asturias, Cantabria, País Vasco y algunas franjas de la francesa. Uno de los mayores desastres ecológicos del mundo.
El Partido Popular que en ese momento gobernaba tanto en el Estado Español como en Galicia desempeñó el más calamitoso papel que uno podría imaginar. Todas sus intervenciones eran de una enorme ineptitud. Tanto que hasta parecían representaciones de teatro burlesco. Quién no recuerda al actual Presidente de Gobierno, Mariano Rajoy, minimizando la situación, al anunciarnos que aquella marea negra no era tal; que únicamente se trataba de una pequeña fuga, de «cuatro hilitos … con aspecto de plastilina en estiramiento vertical», y no la realidad: 60.000 toneladas de crudo.
En estos días, 10 años más tarde, se están celebrando las primeras sesiones del juicio con el que se busca depurar las responsabilidades. Juicio que se espera que dure alrededor de siete meses. Pero es llamativo que únicamente haya cuatro acusados; todos directamente vinculados con el barco y la empresa a la que pertenecía ¿Y los políticos que gestionaron y dieron las órdenes al capitán del barco?
Pero esta inmensa catástrofe también nos ofreció una dimensión positiva que me gustaría subrayar: el compromiso y solidaridad de una juventud que en esa misma época no se hacía nada más que presentar como negativa.
Eran los años en los que el gobierno del Partido Popular, con José María Aznar de Presidente venía tratando de caracterizar a la juventud como la peor de toda la historia de la península. Un bombardeo mediático muy intenso no hacía más que tratar de sacar a la luz una imagen negativa de los chicos y chicas de aquel momento. Se les presentaba como:
* Vagos. Machaconamente se trataba de argumentar que aquella juventud no sabía lo que era esforzarse, que carecía de la «cultura del esfuerzo».
* Violentos. Uno de los mantras del momento era que estaba creciendo a un fuerte ritmo el número de comportamientos violentos del alumnado en las aulas. Pero la realidad es que las investigaciones con un mínimo de rigor que salían a la luz, no constataban con datos esa sensación. Lo que acontecía realmente era que los pocos casos que existían estaban siendo muy magnificados a través de los medios de comunicación. Algo que nos recuerda a la estigmatización como «antisistema» y «gamberros» con la que se les está etiquetando en el presente, para tratar de desmovilizarlos y que no protesten ante las políticas de desmantelamiento del sistema educativo público y, en general, del Estado del Bienestar.
* Ignorantes. Otra línea de críticas contra la juventud era la que trataba de presentarlos como incultos e, inclusive, analfabetos. Con excesiva frecuencia y, lo que es peor, sin tener que aportar evidencias rigurosas, se escuchaban frases del tipo: «están cayendo los niveles», «cada día son más burros», «saben mucho menos que yo a su edad», … Se ignoraba que nunca antes en nuestra historia tantas chicas y chicos estaban estudiando y tenían alguna titulación.
* Amorales. Quién no escuchó en aquellos años aquello de que las chicas y chicos ya no respetaban a nadie, en especial a las personas mayores. La conversaciones en las que se juzgaba a adolescentes insistían continuamente en que ya no había valores y por eso se negaban a obedecer a sus progenitores. Quienes así los juzgaban eran, generalmente, personas mayores educadas en ambientes familiares y escolares muy autoritarios y dogmáticos, nada democráticos, en las que el adulto siempre tiene razón.
* Borrachos. Fue también en esos años cuando los medios de comunicación comenzaron a informar de que muchos chicos y chicas las noches del fin de semana en vez de acudir a discotecas, bares y demás garitos de moda, optaban por practicar la «cultura del botellón». Una inteligente manera de hacer frente a unos negocios que les cobraban cada vez más caras las consumiciones que hacían, e incluso les engañaban con bebidas de peor calidad.
Con semejante imagen de la juventud el Partido Popular pretendía que las capas más adultas de la sociedad le dieran el visto bueno a las políticas autoritarias y dogmáticas con las que pretendían «enderezar» y «re-educar» en sus valores e ideales a aquellos chicos y chicas. La LOCE, que en esos momentos iniciaba sus primeros debates, era un buen ejemplo de una ley educativa en la que, entre otras cosas, se apostaba por endurecer el clima de la convivencia, en reinstaurar unos viejos modelos autoritarios, completamente incompatibles con un sistema que debería capacitar y acostumbrar a las generaciones más jóvenes a vivir y practicar la Democracia.
Pero la catástrofe del Superpetrolero Prestige nos ayudó a hacer visible otra imagen de la juventud completamente diferente: la realidad de unas chicas y chicos muy solidarios, comprometidos con la ecología; informados y dispuestos a ayudar y a arriesgar su salud para resolver aquel problema generado por unos modelos empresariales obsesionados exclusivamente por abaratar costes para obtener más beneficios, minimizando los riesgos.
En aquellos días alrededor de 300.000 jóvenes, de manera completamente voluntaria y altruista, se dieron cita en nuestras costas inundadas por el chapapote para ayudar a limpiar las playas, las rocas y ayudar a proteger a la fauna que estaba también sufriendo sus mortales efectos. En esos días pudimos comprobar que, al igual que también en el momento presente, cuando los chicos y chicas perciben las situaciones de injusticia les hacen frente, se movilizan con el fin de buscar soluciones.
Catástrofe del Prestige, 2003. ¿Dónde están los responsables?