3 abril
2022
escrito por jurjo

Por uma escola inclusiva e democrática

Entrevista com Jurjo Torres Santomé

 

  • Arlindo Fernando Paiva de Carvalho Junior. Instituto Benjamin Constant e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
  • Andrea Rosana Fetzner. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)


Revista e-Curriculum

São Paulo, v. 20, n. 1, jan./mar. 2022, págs. 14-39

e-ISSN: 1809-387

 

 

 

For an inclusive and democratitc school: interview with Jurjo Torres Santomé

Abstract

The interview with Jurjo Torres Santomé was conducted as part of studies about curricular justice and on how such a concept could contribute  to inclusive  school and pedagogical practices. Situates his trajectory and contributions to the perception of the field of curriculum, as a critical environment for the technical approaches that sometimes predominate in the field of pedagogical practices. The teacher was born in Castro de Rei, Lugo province, Spain, and lives in the city named Coruña. He is married and is father of a young girl. Graduated in pedagogy and psychology, has a master’s and doctorate in education. He is a full professor at the University of Coruña, where he coordinates the research group ‘Educational Innovations’. His books and articles are published in different countries, and among his subjects of study are, teacher training, integrated curriculum, curriculum justice, among others.

  

Por una escuela inclusiva y democrática: entrevista con Jurjo Torres Santomé

Resumen

La  entrevista con Jurjo  Torres  Santomé fue realizada  como  parte  de  los  estudios  sobre  la  justicia curricular  y  sobre  cómo  tal  concepto  podría  contribuir  para  prácticas  escolares  y  pedagógicas inclusivas. Sitúa su trayectoria y contribuciones para la percepción del campo del currículo como un ambiente  crítico  a  los  enfoques  tecnicistas  que,  por  veces,  predominan  en  el  área  de  las  prácticas pedagógicas. El profesor nació en Castro de Rei, provincia de Lugo, en España y reside en la ciudad de la Coruña Es casado y padre de una joven, se formó en pedagogía y psicología, posee maestría y doctorado en educación. Es profesor catedrático en la Universidad de la Coruña, donde coordina el grupo de investigación Innovaciones Educativas. Sus libros y artículos están publicados en diferentes países, teniendo entre sus temas de estudio la formación de los profesores, el currículo integrado, la justicia curricular, entre otros.

 

A presente entrevista é fruto da convivência e dos estudos realizados no laboratório do grupo de pesquisas Inovações Educativas, coordenado pelo professor Jurjo Torres Santomé, na  Universidade  da Coruña,  na  Espanha.  A entrevista  é  decorrentedo  estágio  doutoral (período  sanduíche)  realizado  com  a  supervisão  do  referido  professor.  Tal  estágio  visava aprofundar os estudos curriculares relacionados à inclusão. Foram seis meses de aprendizado e trocas que culminaram, em março de 2020, na realização da entrevista, que fechou um ciclo de grande amadurecimento e aprofundamento no campo dos estudos curriculares, tendo como ênfase a escola inclusiva e democráticafrente à diversidade.

 

.   .  . Ricardo Levins Morales – «The Throne Within»

Jurjo  Torres  Santomé  é  um  importante  pensador  no  campo  educacional  e  referência nos  estudos  curriculares.  Professor,  formado  em  Pedagogia  e  Psicologia,  com  mestrado  e doutorado em educação, atualmente, é professor catedrático da Universidade da Coruña, onde coordena o grupo de pesquisa Inovações Educativas. Dentre algumas de suas principais obras publicadas, estão: El  curriculum  oculto (1991), Globalización  e  interdisciplinariedad:  El curriculum   integrado (1994), Educación   en  tiempos   de   neoliberalismo (2001), La desmotivación  del  profesorado (2006), La  justicia  curricular: El caballo  de  Troya  de  la cultura escolar (2010), Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas (2017),  além  de  diversos  textos,  palestras  e  entrevistas  em  comunidades acadêmicas de diferentes países.

O  relato  ofertado por  Torres  Santomé  é  de  forte  contribuição  para  a  construção  de currículos  inclusivos,  que  se relacionam  à  organização  escolar  não  excludente  e  não classificatória;  além  disso,  facilita  a compreensão do  termo  “Justiça  Curricular”,  aqui compreendido como  um conceito  que  caminha  de  mãos  dadas  com  a  organização  escolar democrática  na  defesa  de  práticas  pedagógicas  inclusivas,  participativas,  dignas,  éticas  e dialógicas. Ademais, a justiça curricular respeita as singularidades dos  corpos, dos sujeitos, das   culturas,   dos   grupos   sociais,   ao   mesmo   tempo   em   que   dá   voz,   visibilidade   e representatividade  a  todos  os  integrantes  das  comunidades  escolares com  suas  distintas realidades  e  regionalidades,  aspectos  constituintes  de  todos  nós,  seres  humanos  complexos, sócio-históricos,  únicos em  suas  características,  desejos,  anseios,  medos  e  experiências,  nas mais diversas dimensões, contextos e cotidianos da vida, em um processo e período de tempo histórico e contínuo

 

ENTREVISTA COM JURJO TORRES SANTOMÉ

 

Entrevistadores: Professor, quando o senhor iniciou os seus estudos curriculares e a sua trajetória no Ensino Superior?

Jurjo  Torres  Santomé: Minha  trajetória  acadêmica  tem  múltiplas  influências. Quando  eu  concluí  os  estudos  de  Ensino  Médio  e  ingressei  na universidade,  vivíamos  os últimos anos da ditadura franquista[i]. A minha família me pressionava, queria que eu cursasse o Ensino Superior, porém me chamava mais atenção o mundo das artes. Diante desse dilema, optei pelas áreas de Educação e Psicologia. Quando iniciei os estudos, o meu objetivo era ter um  diploma  e  poder  trabalhar,  mas,  naquele  momento,  comecei a  me  envolver  com  os movimentos sociais, por meio de grupos e partidos políticos clandestinos, em uma tentativa de lutar pela democracia. Compreendi que também precisávamos de outro tipo de educação, um projeto educativo antifascista para reeducar as nossas cosmovisões fascistas. O trabalho político  nos  grupos  com  os  quais  eu  militava  me  permitiu  ver  que  as  vidas  pessoais  nunca devem ser entendidas de forma fragmentada; todos os âmbitos: público, privado e profissional estão  em  inter-relação,  tenhamos ou  não  consciência  disso.  Não  é  coerente  ser  democrata, anticlassista,  antirracista,  antissexista  em  horário  de  trabalho  e  não  o  ser  nos  momentos  de lazer, no ambiente familiar, na vida privada.

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Naquela época, filiei-me a um partido político clandestino e comecei a trabalhar pela mudança, pela democracia e por uma sociedade socialista mais democrática, inclusiva e justa. Por um lado, eu estava começando a minha carreira, estudando o que me mandavam estudar, como  era  a universidade  antigamente,  muito  conservadora  e  fascista.  Por  outro  lado,  nos partidos e lutas políticas, começavam a circular bibliografias, textos, discursos e debates que o  franquismo  proibia,  mas  que  foram  aflorando  clandestinamente  na  sociedade.  Com  isso, pouco a pouco, fui percebendo a necessidade da luta política, também, no campo educativo. Tal engajamento não era necessário apenas para fazer com que as classes populares chegassem à universidade, o que até então não era uma realidade. À medida que a minha carreira foi se estruturando, fui percebendo que essas mesmas lutas políticas estavam nos conteúdos de cada disciplina, falando de uma realidade inexistente, pois as vivências eram outras. Eu me formei e finalizei a licenciatura em Pedagogia no mesmoano em que morreu o ditador Franco, em 1975, e esse evento promoveu uma forte mudança. Nessa mesma época, comecei a trabalhar em  uma  rádio,  com  programas  sobre  a  cultura  galega,  aqui  na  Galiza,  reivindicando  uma cultura galega autêntica, lutando por um idioma galego, que é também uma variante do galego-português. Nós queríamos que o idioma fosse legalizado e que se inserisse na vida cotidiana e no ambiente de trabalho, e não que se tornasse uma espécie de língua proibida, só permitida em ambientes onde o Estado não vigiava.

Com  o  passar  dos  anos,  tive  a  possibilidade  de  trabalhar  como  professor  na Universidade  de Salamanca,  concorrendo  a  um  posto  de  professor  adjunto  (assistente).  Em 1977,  ingressei  na instituição  supracitada,  e,  a  partir  disso,  fui  me  aprofundando  no  tema Currículo,  inicialmente,  por  meio  da  sociologia  da  educação,  posteriormente,  pesquisando diretamente o assunto.

Visto que era recém-chegado à instituição, eu era o último a escolher tudo. Então, a cada ano, eu me deparava com matérias novas e, em muito pouco tempo, fui me dando conta de que havia algumas que eu gostava mais. Percebi que essa docência poderia ser um grande enfrentamento, pois eu tinha que lidar, também, com a própria universidade, com o estamento universitário, que era conservador. Havia muitos companheiros, professores e professoras, que já  faziam  parte  do quadro  fixo  (permanentes  no  cargo), funcionários  catedráticos  da universidade que não gostavam dos estudos nos quais eu trabalhava e investigava.

Inicialmente, notei que a bibliografia oficial, os livros que líamos, eram muito ruins. Além  da abordagem  fascista,  eram  controlados  por  uma  espécie  de  metafísica  ou  ideologia ultraconservadora e fundamentalista religiosa.

Na  ditadura  espanhola,  os  dois  grandes  poderes  eram  a  Falange  (o  único  partido político  legalizado,  pertencente  aos  fascistas  e, local de  militância  do  próprio  Franco),  uma corrente similar ao nazismo de Hitler e ao fascismo de Mussolini, e, por outro lado, vigiando tudo isso e apoiando e legitimando esse racismo, a igreja católica ultraconservadora.

Nessa    época,    a    igreja    católica,  ultraconservadora, estava muito distante ideologicamente da Teologia da Libertação, que só conheceríamos anos mais tarde, na década de 1970, na América Latina; corrente essa que foi proibida oficialmente na Espanha.

A  igreja  católica  apostólica  e  romana,  que  desde  o  primeiro  momento  apoiou  e colaborou com o golpe  militar de 18 de julho de 1936, movimento este que tirou do poder, pelas armas, a República Democrática Espanhola, recebeu, entre outros prêmios, o encargo de governar e vigiar os sistemas educativos e o mundo da cultura. Todos os conteúdos escolares, publicações  e  atos  culturais  precisavam  da aprovação  da  Falange  e  da  Igreja.  Dessa  forma, seriam  incutidos  no  povo  espanhol  uma  cultura  e um  senso  comum  fascista,  ultracatólico  e militarista.

Contudo, clandestinamente, chegavam textos proibidos, como, por exemplo, os livros e revistas  marxistas,  as  obras  dos  grandes  pensadores,  os sociólogos  mais  progressistas, marxistas, neomarxistas, etc. Nesse momento, passei aser consciente da situação da  Galiza, meu povo, e com os discursos da esquerda que  a apontavam como nação negada dentro do Estado  Espanhol. Entrei  como  militante  na  organização  nacionalista  e  comunista galega, União do Povo Galego (UPG).

Na  formação  política  que  recebíamos  como  militantes,  no  interior  dos  partidos políticos, nós trabalhávamos muito com os livros de Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Frantz Fanon, entre outros, mas tais referências não estavam presentes no discurso acadêmico.

Nós  líamos,  aos  19,  20  anos,  os  livros  de  Frantz  Fanon,  como  Pele  negra,  máscaras brancas (2008) e  Os  condenados  da  terra (1968),  e  a  obra  de  Albert  Memmi,  Retrato  do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (2007). Nós estávamos em contato com toda essa bibliografia sobre o colonialismo porque queríamos afirmar que a Galiza era uma colônia interna, não era como as colônias localizadas fora da Espanha.

A  Galiza  se  localizava  no  mesmo  território  do  Estado  espanhol, mas  não  era  a beneficiária dos excedentes econômicos e da riqueza gerada pelas empresas situadas nas nossas cidades, estes eram investidos majoritariamente em Madrid. Por exemplo, a Galiza produzia energia elétrica para todo o país, além de exportar para a França, acarretando a destruição dos nossos rios, vales e recursos agrícolas, mas os benefícios econômicos não eram investidos na nossa comunidade. A Galiza era explorada e os respectivos productos e recursos seram levados para outras ciudades fora da Galiza e para outros países. Nós, os habitantes locais, não usufruíamos do que  era  produzido  em  nossa  terra, o  mesmo  ocorria  nas  colônias  externas. E  o  nosso  povo ainda precisava emigrar, pois aqui não havia onde trabalhar.

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Nós  víamos  que  havia  essa  situação  de  colonialismo  presente, aqui  na  Europa, em muitos países. O que se percebia era que, no continente europeu, quando se construiu o Estado Nacional, determinados  Estados-nação  se  ergueram  e,  junto  com  eles,  os  fenômenos  de negação de determinadas identidades e povos dentro do mesmo estado. Diante desse cenário, por meio da minha formação militante, pouco a pouco, busquei ser coerente com o discurso pedagógico e com os modelos educativos vigentes, entendendo que seria necessário explorar um outro tipo de educação, de pedagogia.

Nesse momento, na Espanha, a palavra currículo quase não era empregada, optava-se pelo  vocábulo  didática. O  mundo  da  didática  estava  dominado  pelo  conservadorismo,  por filosofias e modelos educativos caducos e autoritários, e oconceito de educação democrática ainda não estava estabelecido, entretanto, pouco a pouco, fomos descobrindo outros livros que falavam  sobre  currículo.  Nós,  militantes  dos  partidos  clandestinos, começamos  a  ler  e, inicialmente, surgiu um questionamento: currículo não viria a ser o mesmo que didática? À medida  que  íamos  nos  aprofundando  nesse  assunto, –e  por  ter  pessoal  apreço  pelas etimologias –, noto que o significado original de currículo é o mesmo que o de didática, vindo o primeiro  vocábulo  do  latim, currere, e o termo didática, do grego didaktikós, ambos representando caminhar em uma direção, planejar-se para caminhar em uma determinada direção.

O  currículo  do  qual  falamos  até  esse  momento  está  muito  mais  influenciado  pelo pensamento  de  esquerda,  pelo  marxismo  e  neomarxismo,  pela  psicologia  cognitiva  de  Jean Piaget  e  Jerome Bruner  (que  faziam  frente  ao  condutismo  até  então  dominante)  e  pelas políticas  educativas  que  o  trabalho  britânico  mais  progressista  vinha  desenvolvendo. E começou  a chegar todo o discurso do marxismo e neomarxismo, que passaram a se  fazer presente.

                    Shelby McQuilkin – «Social Networking»

Alguns anos mais tarde, durante a década dos 70 e início dos anos 1980, passei a ter contato com a obra de autores silenciados e desconhecidos pela universidade espanhola: Paulo Freire,  Célestin  Freinet, Paul  Willis,  Basil  Bernstein,  Lawrence  Stenhouse,  John  Elliott, Jerome Bruner, etc. Há várias obras que me marcaram muito, que influenciaram muito o meu modo de pensar, entre elas: o livro compilado por Michael F. Young, Knowledge and control: new directions in the sociology of education (1971) e os livros de Michael Apple, em especial a obra Ideologia e currículo (1979). Tudo isto, mostrou-me um mundo novo, e a partir daí fui aprofundando nos estudos sobre o neomarxismo aplicado à educação e ao próprio currículo, passando a focar mais nos conteúdos sobre o assunto.

Algo que me chamou rapidamente a atenção foi o enorme preconceito ideológico que a escola defendia como cultura; temática que passou a ocupar a maior parte do meu tempo de pesquisa  e  que,  anos  mais  tarde,  sistematizei.  Pouco  a  pouco, fui  descobrindo  que  a  justiça social e a justiça curricular eram coisas distintas.

No tema da justiça social incidiam todos os discursos que faziam com que as classes e coletivos  sociais  marginalizados  e  silenciados  pudessem  e  tivessem  obrigatoriamente  que aceder à escolarização. O que estávamos vendo era que os pobres, as classes mais populares e as minorias, como a cigana, puderam entrar e ir ascendendo por meio do sistema educativo. Com as lutas sociais de finais dos anos 1970 e 1980, baseados nas análises sobre a classe social e as desigualdades, fomos conseguindo tornar o ensino obrigatório na prática e não somente na  legislação,  pois  nas  pesquisas  sobre  o  que  acontecia na realidade, constatávamos que quando as minorias colocavam o pé na escola, a porta da saída abria imediatamente; e pouco a pouco, todos iam abandonando os estudos.  Esse panorama foi o que me levou a estudar, a descobrir e a dissertar sobre o que era a teoria da reprodução, primeiro em Bourdieu, depois em Bowles e Gintis, que era: o sistema educativo servindo para reproduzir a estrutura classista, sexista e racista da sociedade do momento. A prova era que entravam as classes populares e, em  função  do  nível  delas ou da  pouca  riqueza  que  poderiam  ter, seguiam  abandonando a escolaridade depois do segundo, terceiro e quarto anos, pois, naquelas condições, a maioria nunca seria capaz de concluir com sucesso a escolaridade obrigatória e, menos ainda, progredir até a universidade e ter êxito.

Como  era  possível  que  todas  as  pessoas  que  fracassavam pertenciam  às  classes populares? As classes mais altas tinham êxito acadêmico com muita mais facilidade. Com o passar  do  tempo,  optei  por  centrar  mais  os  meus  estudos  nas  análises  dos  conteúdos curriculares e notei que os conteúdos culturais trabalhados nas escolas não têm nada a ver com o  mundo  dessas  pessoas,  não  falam  de  suas realidades  e,  portanto,  temos  dificuldades  para motivar  esses  estudantes  a  se  aprofundarem  nesse conhecimento  e  mostrar, nisso, alguma serventia.

A educação se apresenta, para mim, por esse contexto de final da ditadura e início da democracia, transformando-se em um compromisso vital. Esse compromisso político não vai se dirigir só a apostas e à preocupação com assuntos públicos. É um compromisso político, no campo educativo, nas praças educativas, nas relações com o alunado, é o meu mundo cotidiano dentro da escola.

Entrevistadores: Professor, diante de tantas adjetivações e pluralidades referentes ao termo currículo, com diferentes conceitos e definições. Hoje, qual seria a  sua concepção de currículo?

Jurjo Torres Santomé: Bem, currículo é tudo o que acontece nas aulas; desde o que pretendemos trabalhar com o alunado até tudo o que fazemos na prática: matérias e os seus conteúdos, os materiais e recursos didáticos, tarefas para o corpo discente, como organizamos o espaço e o tempo, a função do professorado e do alunado, o papel das famílias e dos demais agentes sociais na aula, as funções e modelos de avaliação que desenvolvemos etc.

O currículo escolar seria o instrumento e processo pelo qual aprendemos a viver e a conviver, a ajudar, a cooperar e trabalhar juntos; a reconhecer o outro tal como é, e valorizá-lo; procurar, nesse reconhecimento, evitar as deformações das socializações, em que os grupos dominantes, para reproduzir o seu poder, construíram. Assim como as imagens distorcidas a respeito dos grupos que eles consideravam inferiores, subalternos. Os sistemas escolares têm a  obrigação  de  trabalhar  para  desmontar  esses  imaginários hierárquicos  e  promover  a igualdade,  ainda  que  dentro  de  individualidades  diversas;  mas  sempre  iguais  em  direitos, conforme as Declarações dos Direitos Humanos.

  Jean Michel Basquiat – «Cabeza» (1981)

É  imprescindível  e  urgente  assumir  que  todos  os  adultos  de  hoje,  que  foram escolarizados,  receberam  a  educação racista,  classista,  sexista, colonialista, etc.,  sem  que ninguém tenha consciencia disso, porque ninguém conscientemente diria que é teoclassista ou que despreza a outros coletivos. Esses preconceitos e olhares seletivos funcionam como um mecanismo automático. A educação é um diálogo em que estamos continuamente debatendo um com o outro, argumentando e contra-argumentando, buscando maneiras de demonstrar por que determinada teoria funciona ou não. Se não fizermos um ensino baseado no diálogo, no debate, procurando escutar as vozes silenciadas e marginalizadas, o discurso elitista se reforça e se consolida de modo reprodutor, conservador, racista, sexista, classista.

Portanto, se nós queremos uma sociedade justa, devemos ser muito conscientes de que em meio a enorme importância das políticas econômicas, industriais, sanitárias, culturais, há uma instituição-chave que tem um poder enorme: as escolas. No ambiente escolar, é construída a visão do que é bom, do que vale a pena, logo, do que não é bom. Se esses processos não se produzem democraticamente, se não se produzem dialógicamente, debatendo, argumentando, contra-argumentando  num  espaço  de  liberdade  de  pensamento,  então  é  previsível  que  a colonização mental, a dominação ideológica continue a ocorrer.

Atualmente, os grupos hegemônicos estão dando ainda mais poder a essa “escola”, por meio  dos grandes  meios  de  comunicação,  que,  de  certa  forma,  controlam  e  manipulam  a informação.  Na  Europa,  está  crescendo  o  pós-fascismo,  o  neonazismo,  tendo  como  um  dos mecanismos de ascensão as fake news, as notícias falsas, que têm um enorme poder. Grupos políticos  e econômicos  muito  poderosos,  até  mesmo  alguns  governos,  estão  contratando empresas  de  informática  para  espalhar inverdades,  inundando  as  redes  sociais  com  perfis inexistentes, divulgando informações que soam verossímeis, apesar de falsas, com a finalidade de  atacar  e  desprestigiar  grupos  e  políticas  progressistas  e  ajudar  os  grupos  fascistas, neonazistas e de direita nas eleições. No Brasil, acredito que, infelizmente, vocês conhecem muito bem esse tipo de estratégia.

A  quantidade  de  notícias  falsas  que  circularam  por  meio  de  mensagens  nas  redes sociais  é imensa,  pois  muitas  pessoas  repassam fake news sem  verificar  a  veracidade  da informação. Ao observarmos essalinguagem de fake news, nos indagamos: a quem favorece? A extrema direita? Essa é a pergunta. Esse tipo de desinformação era praticado nas escolas, por meio dos conteúdos, dos livros didáticos, da injúria educativa, mas atualmente a notícia circula por outros meios. Se você olha para o seu país, para o mundo, um dos assuntos mais falados, mas sobre o qual raramente há um debate democrático, é: Qual é a cultura escolar que  dizemos  ser  obrigatória  a  todas  as  pessoas  e  que  taxa  aqueles  que  não  a  possuem  de ignorantes? Onde debatemos isso democraticamente? Quem controla os livros didáticos nas escolas? Quais autores e autoras escrevem essas obras? Afinal, as informações que aparecem nos livros didáticos são aceitas como verdade absoluta, neutra e objetiva.

Os livros didáticos, em espanhol, “libros de texto”, como sugere a origem etimológica, são os textos, as obras sagradas, como a Bíblia para os cristãos e o Alcorão para o Islã. Se algo está na Bíblia não haverá revisão histórica, não há forma de contestá-la. Para tal, inventaram uma ciência, que é a teologia, para “interpretar”, tornar crível tudo o que há nos textos bíblicos e que, na atualidade, a ciência demonstra que é falso, como, por exemplo, que a mulher nasceu da costela de um homem, que Deus criou o mundo em sete dias, entre outras coisas, caindo em total contradição  com o que hoje demonstram as teorias evolucionistas. O que eu quero dizer é que os conteúdos escolares, que a cultura que a escola legitima como cultura e como verdades  objetivas,  científicas  e  neutras  são  concepções  que  não  escutaram  as  vozes  das mulheres, dos povos originários dos países colonizados, das classes populares etc.

Os livros didáticos reproduzem e impõem a cultura oficial que legitima uma suposta superioridade  das  elites  sociais,  dos  povos  colonizadores,  das  empresas  multinacionais,  dos poderosos.  Essas  obras representam  apenas  os  homens,  reforçam  uma  cultura  patriarcal, classista, racista, idadista, urbana, colonialista, militarista, desrespeitosa com a sustentabilidade do planeta. Procure e  tu  não  encontrarás  um  livro didático que não  seja patriarcal, classista, racista, todos são assim. Levei muitas décadas de minha vida profissional revisando  continuamente  materiais  curriculares,  não  encontrei  um  que não fosse racista, classista ou sexista, nenhum, que coincidência.

Entrevistadores: Professor, como os estudos curriculares podem contribuir para uma educação escolar mais inclusiva?

Jurjo  Torres  Santomé:  À  medida  que  estas  pesquisas  e  estes  estudos  curriculares estejam  presentes.  Se  você  faz  uma  pesquisa  e  introduz  entre  as  dimensões  que  merecem atenção, –por exemplo, no seu caso, que trabalha junto a pessoas com deficiência visual –, a partir daí elas se tornam visíveis. Você passa a vê-las como aparecem e se aparecerem, porque elas podem não aparecer. Pessoas cegas nunca aparecem em livros didáticos. Pode parecer um com  óculos,  porque  tem  uma  visão  cansada,  mas  não  porque  é  cego.  Ao  não  aparecer, tampouco os vemos. Descobrimos que uma pessoa é cega porque passamos diante dela na rua. Em sua vida cotidiana, você não está pensando em como as vê e pode se comunicar com elas, ou  com  surdos,  ou  com  quem  quer  que  seja.  Ao  não  estarmos  acostumados  em  nossa  vida cotidiana a interagir com pessoas com deficiência, elas acabam por se converter em invisíveis, até  para  o  nosso  trabalho  como  profissionais,  seja  o  que  for  (arquitetura,  urbanismo, engenharia,  educação,  mundo  laboral).  Isso  explica porque  os  desenhos das  cidades, ruas, praças, prédios,  lugares  de   trabalho,  de ócio,  o  interior das nossas casas, escolas, universidades,  entre  outros  lugares,  dificultam  a  mobilidade,  as  inter-relações  na  vida cotidiana dessas pessoas e as nossas interações com elas.

. .   Michael D’Antuono – «Class System»

Há toda uma série de coletivos que não aparecem nas preocupações das pesquisas e, portanto,  não  são  uma  dimensão  a  ser  considerada.  Ou  seja,  você  analisa  os  materiais curriculares, os livros didáticos e, historicamente, conclui que não foram contemplados. Até os anos 1980 a única coisa a que se prestou atenção foram as classes sociais, porque, no final das  contas,  os  movimentos  sociais  existentes estavam  orientados  e  muito  marcados  pelos partidos marxistas e neomarxistas.

Quando os movimentos feministas começaram a se organizar minimamente, surgiram, também, estudos analisando a presença das mulheres nas ilustrações, nos próprios conteúdos, a presença da mulher como conteúdo, as vozes femininas etc. As justas reivindicações e lutas do feminismo explicam suas realizações.

Este  milênio,  o  século  XXI,  deve  ser considerado  como  a  era  do  feminismo.  Algo semelhante ao que se passou com a infância desde princípios do século XX e que preconiza o título do livro “O século da infância”, da feminista sueca Ellen Key, publicado em 1900. As reivindicações e mobilizações sociais e o bom trabalho de muitos profissionais em todos os âmbitos   ajudaram   a   estruturar   as   lutas   pelos   direitos   de   qualquer   coletivo   ou   povo marginalizado, silenciado, ignorado; inclusive os direitos das pessoas com deficiência.

Os pesquisadores da sociologia voltados às pessoas com deficiência foram, em grande medida,  a  força  motriz  a  intervir  nesse  universo,  percebendo  e  argumentando,  com  grande sucesso, que a Carta dos Direitos Humanos não estava sendo respeitada. Até então, o mundo das pessoas com deficiência era o centro de preocupação apenas da medicina e da psicologia, esta  última  voltada  apenas  para  a  psicologia clínica,  e  não  para  a  psicologia  social e para a Educação Inclusiva.  As  famílias com  maior  capital cultural e com  filho(a) com deficiência também foram grandes responsáveis, visto que começaram a se preocupar com o que era feito na escola, com maneiras de ajudá-los etc.

Na  Espanha,  um  dos  países  europeus  mais  avançados  nessa  legislação  nos  anos  do governo socialista, com o Ministério da Educação Socialista, durante a década de 1980 e início dos anos 1990, elaborou uma nova lei educacional, possibilitando esse discurso da integração, que  afirmava  que  as  crianças com  deficiência deveriam estudar  junto  às  crianças  sem deficiência. Dessa forma, os colégios de Educação Especial foram fechando aos poucos, e os recursos  e  especialistas  dessa  área  passaram  para  as  escolas  regulares,  visando  beneficiar  a todos. Se na escola é ensinada a convivência, não posso aprender a viver junto com uma pessoa cega se eu não a tenho aqui comigo e não nos conhecemos e nos reconhecemos. Então, nos anos 1990 e, a partir desses eventos, a inclusão vaise consolidando e tornando-se cada vez mais exigente, inclusive no que diz respeito à necessidade de se revolucionar todo o campo didático.

Ainda em meados dos anos 1970, fiz uma especialização em Educação Especial para pessoas com deficiência. Em todos os livros que estudei na carreira, não há nenhum hoje que seja  útil,  válido.  Essas  obras  são  unicamente  materiais  para  historiadores,  para  comprovar como  a  educação  foi  melhorando. Em  todos  aqueles  livros  e  documentos  havia  uma  certa barbárie do ponto de vista atual, porque éramos informados de que as pessoas com deficiência tinham uma síndrome ou outra característica que delimitava o máximo que poderíamos aspirar delas,  que  tinham  limitações  insuperáveis  e  que  existia  um  topo  na  melhora  que  não poderíamos superar.

Atualmente, à medida que vamos nos aprofundando no discurso teórico, sociológico e político da deficiência e inclusão, descobrimos que as nossas próprias metodologias, nossas formas de organizar o ensino estavam estabelecidas sem contar com essas pessoas e, portanto, se esses indivíduos entrassem na escola, iriam fracassar, pois não eram esperados.

Auguste Comte afirmava que existia uma área do conhecimento na ciência que freava o desenvolvimento científico, a medicina. Os médicos estavam atrasando o desenvolvimento da ciência? Sim, porque estavam classificando, assumindo que as doenças se classificavam de duas maneiras: curáveis e incuráveis. Se essa enfermidade fosse incurável, não haveria mais investigação, apenas o enfrentamento, mas com a certeza da impossibilidade de cura.

O desenvolvimento da ciência é exatamente o oposto, é baseado no fato de que eu não sei  como  resolver  esse  problema,  mas  deve  haver  uma  solução,  por  isso, continuarei pesquisando e ensaiando. A medicina aprendeu isso muito bem, todos sabemos hoje que há enfermidades que ainda não conseguimos curar, por exemplo, a Covid-19, mas sabemos que isso deve ser possível. Não há ninguém para dizer que isso é impossível, não, alguns levaram mais tempo, outros  menos,  mas tem  que  ser  possível.  Todo  mundo  está  pesquisando  até  encontrar  uma vacina, vamos encontrá-la.

A partir  da  década  de  1980, de 1985 a 1990, aplicamos o mesmo método, nós não podíamos melhorar a inclusão educacional desses coletivos sociais, porque a compreensão era que já havíamos chegado ao topo, ao nível mais alto possível. A partir daquele momento, em que  derrubamos  aquele  suposto  topo, a única coisa que dissemos foi: Ainda não sei como alcançar  aquelas  ou  aqueles  que  têm essas  características  para  resolver  ou  aprender  esses problemas,  mas  tem  que  haver  uma  maneira  e,  a  partir  desse  modo,  todos  os  métodos  de educação se revolucionaram, porque começamos a ensaiar e a fazer o mesmo que os médicos: «Essa  forma  não  nos  serve,  tentaremos  outra», “Isso não nos ajuda, vamos tentar de outra forma até que inventemos uma que nos ajude a fazer isso”. Então, nesse ponto, passamos a ter pessoas com deficiência que entraram em carreiras universitárias e conseguiram obter títulos de  doutorado.  Há  30  anos, a  ciência  dizia  que  isso  era  impossível.  Hoje,  as  pessoas  com síndrome  de  Down  formam-se  em carreiras  universitárias  e  isso  significa  que  o  sistema educacional   assumiu   essa   responsabilidade.   As   metodologias   didáticas   e   o   currículo descobriram  que  deve  haver  uma  forma  de  essas  pessoas  aprenderem.  Revisou-se  todos  os limites  que  tínhamos  construídos  artificialmente  até  derrubá-los  e  acharam  uma  maneira  de essas pessoas com deficiência aprenderem e estarem com outros indivíduos. E as pessoas sem deficiência aprenderam a vê-las, a conviver, a trabalhar, a desfrutar, a estabelecer toda classe de relações com elas.

. . Zay Zay Htut – “Today’s Life (Save Myanmar)”

Dessa  forma,  à  medida  que  estão  nas  salas  de  aula,  todos  aprendemos  a  conviver, porque estamos na mesma aula e nos (re)conhecemos. Vejo que tal pessoa faz isso melhor ou pior,  compensamo-nos  e  ajudamos  uns  aos outros,  porque  aprendemos  a  estar  juntos.  Se vivermos separados, sempre suspeitaremos do outro, que é o problema que pode surgir para nós agora, sobretudo como um dos efeitos da covid-19, que gera o medo de que outros possam nos contaminar, deixar-nos doentes e isso é perigoso. Basta lembrar que os slogans políticos eram: “Cuide-se!”, “Fique longe dos outros!”. Todo um vocabulário ultraindividualista, como “Salve-se você mesmo”.

Entrevistadores:  Professor,  no  Brasil,  um  de  seus  livros  é  chamado  de  Currículo escolar e justiça social: o cavalo de Troia da educação (2013). Na Espanha ele é chamado de La justicia curricular, el caballo de Troya de la cultura escolar (2011). Gostaria que o senhor falasse um pouco dessa mudança no título, do conceito de justiça curricular e como ele pode contribuir para a inclusão escolar.

Jurjo Torres Santomé: O termo “justiça social” não me agradou muito, foi o tradutor ou  a  editora que mudou esse nome. Em espanhol é “justiça curricular”. Nesse livro, há a diferença entre a justiça curricular, a justiça educativa e a justiça social. São coisas diferentes. Quer dizer, a justiça curricular é um elemento que estava passando despercebido dentro dessa luta pela justiça social.

A justiça tem muitas dimensões: a justiça social, a justiça econômica, a justiça afetiva, a  justiça  administrativa,  a  justiça  em  todos  os  campos,  quer  dizer,  você  conhece  cada ministério  do  governo  e  esses  ministérios  fazem  políticas  justas  e  injustas.  Há  a  justiça econômica, justiça jurídica, justiça religiosa, entre outras, logo, há a justiça educativa. Mas a educação é um campo que tem muitas parcelas, tem muitas pessoas que creem que a justiça educativa começa ou termina permitindo que todo mundo vá à escola. Inclusive fazemos com que  a  escola  seja  obrigatória,  que  sejam  escolarizados,  que  não  passem  fome,  incluindo  a alimentação na escola para que aprendam. De alguma forma, readaptamos todos os elementos escolares,  mas  sem  tocar  no  livro  didático,  por  assim  dizer.  Ou  seja,  vamos  fazer  com que entrem nas salas, que tenham umas cadeiras confortáveis, mesas acessíveis a cada estudante e que  se  acomodem  as  condições  e  as  possibilidades  físicas  de  cada  estudante  etc., mas  não entramos nos conteúdos escolares.

O currículo é uma parcela da educação e é tudo o que vamos fazer dentro daquela aula, aquilo  que  consideramos  que  vale  a  pena  que  se  estude  e  os  modos  como  se  trabalha,  se organizam  as  tarefas  escolares  das  crianças,  com  os  livros  didáticos  ou  com  qualquer  outro recurso didático etc. A justiça curricular é que vai olhar, aplicar, aprofundar em que medidas esses conteúdos que estão sendo abordados nos livros didáticos, nos materiais curriculares são justos ou não, quer dizer, de que forma essas culturas visíveis e invisíveis, que trabalhamos nas nossas pesquisas e publicações, são também elementos que perpetuam essas situações de desigualdade social. Quando analiso os materiais curriculares, verifico que as classes sociais populares não estão representadas, e quando estão são deturpadas, justificando situações de subordinação. A escassa  presença  das  mulheres  nos  conteúdos,  a  restrição  dessa  figura  feminina  a  tarefas domésticas, aos cuidados da casa e coisas sexistas. A comunidade cigana aqui na Espanha, por exemplo, vejo que estão nos colégios, mas não nos livros escolares. Eles dizem: “Se não falam de mim, eu não existo?”. A justiça curricular revela de que modo todos estão presentes nos conteúdos escolares, se o que dizem de nós é justo, e se as nossas vozes estão ali presentes. Os povos  indígenas  estão  presentes,  sim,  mas  por  que  falar  por  eles?  Por  que  outros  falam  por nós? E o mesmo acontece com muitos outros coletivos e realidades sociais.

Então, nota-se que essa justiça curricular revela em que medida todos esses conteúdos são respeitosos com todos os coletivos sociais, desmontando preconceitos, prejuízos e ideias falsas que temos sobre os outros e, portanto, de alguma forma é inclusiva. A justiça curricular nos  mostra  como  colocamos os  “outros”  no  currículo,  nos  conteúdos,  no  que  lemos  e estudamos, se esses coletivos sociais estão presentes e se somos respeitosos com eles. Ou seja, se somos respeitosos, inclusivos e os reconhecemos no sentido de justiça, como povos iguais a nós, que podem ter diferenças, mas são iguais em relação a direitos.

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A  Declaração  Universal  dos  Direitos  Humanos  é  um  marco,  um  parâmetro  para  o respeito das diferenças entre os povos. Todas as Declarações de Direitos Humanos, não só a de  1948,  mas  todas  as posteriores  aprovadas  a  partir  das  lutas  sociais,  como  as  cartas  de Direitos  Humanos  sobre  os  povos  indígenas,  sobre  as  mulheres,  sobre  a infância,  sobre  a pessoa  com  deficiência  etc.  Se  o  corpo  docente  desconhece  a  carta  de  Direitos  Humanos, é muito  mais  difícil  que  seja  justo,  mesmo  sem pretenderem,  irão  atentar  contra os  diversos coletivos sociais.

Todavia, faltam declarações de Direitos Humanos específicas a serem aprovadas, por exemplo,  sobre  o  meio  ambiente,  sobre  as  pessoas  LGBTQIA+,  falta  a  carta  do  direito  à cidadania, à informação e ao conhecimento. Um governo não pode tolerar que circulem fake news, notícias  falsas  que  estão  sendo instrumentalizadas  política  e  economicamente  por grupos,  por  exemplo,  de  extrema  direita,  por  grandes  monopólios  financeiros,  por  igrejas fundamentalistas etc. Deve haver uma legislação que proíba isso, deve-se defender a liberdade de pensamento e o direito à informação, mas informação verídica, não mentiras. Eu não posso injuriar  uma  pessoa,  pois  posso  ir  à  justiça  por  tal  feito,  pois  tampouco  uma pessoa  pode injuriar  os  coletivos  sociais  mediante  notícias  falsas.  Deve-se  vigiar,  prestar  a  atenção  e corrigir nos agrupamentos escolares, na formação, nos conteúdos, nas formas de avaliar, nas formas  de  ensinar,  considerando  que  há  pessoas,  por  exemplo,  com  deficiência  visual, portanto, tenho que ter uma metodologia de ensino que as contemple.

Na  política  inclusiva  essas  pessoas  devem  estar  presentes.  É  nossa  obrigação  que estejamos juntos. Temos que aprender a conviver e se aprende resolvendo problemas juntos. Não sabemos como se pode solucionar isso, mas sabemos que está ali, portanto, temos que buscar uma solução. É o mesmo que estamos fazendo com a Covid-19, e estamos aprendendo rapidamente, pois aqui é igual, mas em vez de ser para um vírus, é para esse vírus informativo que nos dão para construirmos um sentido comum que inferioriza e demoniza aqueles que não conhecemos.

Temos um longo caminho com as mulheres, com os povos indígenas,com os ciganos, com quaisquer coletivos sociais, com as culturas silenciadas, mas todos juntos, todos temos os mesmos  direitos.  É obrigação  política  e  moral  de  cada  cidadão  fazer  frente  às  injustiças praticadas contra cada um desses coletivos sociais silenciados e, por vezes, injuriados por meio das barbaridades e mentiras que dizemos explicita e implicitamente sobre eles.

A  justiça  curricular  é  o  resultado  de  uma  análise  curricular  que  é  concebida, implementada,  avaliada  e  pesquisada,  tendo  em  conta, o  grau  de  respeito  e  resposta  às necessidades e urgências de todos os grupos sociais; ajuda-nos a ver, a analisar, a compreender e a julgar a nós próprios como pessoas éticas, solidárias, colaborativas e corresponsáveis num projeto  mais  amplo  de  intervenção sociopolítica que  visa a  construção  de  um  mundo  mais humano, justo e democrático.

Entrevistadores: Nesse  mesmo  livro,  o  senhor  fala  sobre  intervenções  curriculares inadequadas. Como elas poderiam contribuir para a inclusão escolar?

Jurjo Torres Santomé: São frutos das análises que vinha fazendo sobre os conteúdos dos livros didáticos, então, o que vou detectando é como se falseia, se deforma e distorce a informação, que fala sobre essas realidades sociais, sobre esses coletivos sociais. Há uns que são  por  silenciamento.  O  silêncio  não  deixa  de  ser  uma  forma  de  falar.  Generalizamos  e pensamos que todos são incluídos ao generalizar, que todos estão presentes (no livro didático), e não é bem assim.

Essas formas inadequadas se referem a como se distorce a presença, o que dizemos e o que há sobre esses coletivos sociais nos conteúdos curriculares. Coube propor uma forma, um agrupamento, uma classificação das principais formas de distorção, de manipulação que há sobre essa informação nos livros didáticos. Há dezenas de formas que vou analisando e me refiro  à  maneira  como  tratamos  esses  conteúdos  e,  portanto,  ao  modo  com  que  somos curricularmente justos ou injustos.

. . .Michael Armitage – The Fourth Estate (2017)

Se eu me refiro aos povos indígenas como se não tivessem nenhuma cultura e enquanto seres muito ingênuos, e digo: “Bom, temos que ser bons com eles, querê-los, amá-los”, é uma forma de  paternalismo,  mas  é  uma  forma  de  paternalismo  que  não  é  justa,  não  enfrenta  o problema de justiça. Pode cair na caridade e não é uma forma de justiça. Então, pode-se ver como  todos  os  discursos  falham,  se  alteram  e  minimizam  dados,  se  ocultam  histórias e, portanto, os conteúdos estão deformando o que sabemos e o que vamos aprender sobre esses coletivos e essas culturas silenciadas.

Há muita informação errônea, temos que prestar muitíssima atenção nos conteúdos e, sobretudo, no tratamento deles. Eu posso deformar e ser injusto com os povos indígenas não falando  deles,  ou  falando  e  distorcendo  as  informações  sobre  eles,  infantilizando-os, exagerando certos dados e não reconhecendo as suas vozes, ou com análises paternalistas, ou não contextualizando  a sua  história  e  as  realidades  do presente, reduzindo a problemas psicológicos individuais, reproduzindo   comportamentos   racistas,  sexistas,   classistas, homofóbicos  etc.,  que  têm  um  fundo,  uma  causa  estrutural; outro  modo  de  tratar  essas realidades injustamente e as deformando é  não  deixando  que  eles  mesmos  digam  que problemas têm e, que soluções veem; outra estratégia é cair no ceticismo normativo, ou seja, que  não  podemos  julgar  as  condutas  de  outros  povos,  porque  respondem  a  outras  tradições diferentes das nossas, por exemplo, que como europeus não devemos opinar e julgar a ablação ou mutilação genital da mulher em certos grupos, em alguns países africanos etc. No livro da Justiça  Curricular,  desenvolvo  muito  mais  esses  tipos  de  modos  de  manipular,  silenciar a informação  sobre  a  realidade  nos  conteúdos  culturais  que  se  estudam  nos  livros  e materiais didáticos. Isso é a justiça curricular, é ver todos esses conteúdos, o que nós estamos dizendo aos estudantes que é  cultura, o que queremos que aprendam  e em que medida as diferentes culturas  estão  presentes,  se  os  coletivos  sociais  são  tratados  justamente,  se  estão  sendo silenciados ou deformados e convertidos em seres subalternos, tratados como “inferiores”, violando as declarações de Direitos Humanos vigentes.

Entrevistadores: Professor,  quais  são  os  efeitos  do  neoliberalismo  nos  currículos  e como ele poderia influenciar a inclusão escolar?

. . Liz Schondelmayer – “Not a Threat”

Jurjo  Torres  Santomé:  Eu  intuo  que  essas  políticas  econômicas  têm  que  ter  uma repercussão, também, na educação e comecei a pesquisar, mais diretamente, desde o início da década de 1990 sobre o assunto. E, nos anos 2001, quando já levávamos uma década falando de neoliberalismo, publiquei o livro Educación en tiempos de  neoliberalismo (2001),  que aborda como e por meio de que mecanismos e discursos essa política de mercado se introduz na educação, condicionando por  completo os propósitos do sistema educativo e da escolarização da população.  Continuei  com  essa  discussão  no  livro  La  desmotivación  del professorado (2006) e na obra já mencionada anteriormente da Justiça curricular. Esses são debates que estão continuamente na minha cabeça, dando voltas. Passei a observar como as políticas  educativas, que estão legislando, apresentam, todas, determinadas características. Comecei a comparar legislações de distintos países e, à  medida que fui aprofundando  e detectando novas faces do neoliberalismo na educação, acabei por voltar a sistematizar no meu último livro, até o momento: Políticas   educativas  y  construcción  de personalidades neoliberales y neocolonialistas (2017). É um livro que está escrito na Espanha, conforme a realidade da Espanha, mas penso que bastante coisa pode ser extensível a outras realidades, pois não podemos esquecer que o neoliberalismo funciona globalmente, em todos os países. Os leitores dirão se são  extensivos ou não. Nós (na Europa) vivemos no chamado “primeiro mundo”, hierarquia  que segue a ser a consequência das políticas dos antigos impérios, que continuam  mantendo relações coloniais ou, de modo mais disfarçado, neocoloniais, de subordinação de povos estrangeiros, sobretudo da África e, também, da América Latina. Então, pergunto: como isso segue se reproduzindo, visto como lógico e normal  sem que  as pessoas dos nossos países, nem dos latinos, nem dos africanos lutem contra isso? Conforme vou  pesquisando sobre esse tema, em especial  apoiando-me na obra e no pensamento de Antonio  Gramsci, acabo por  me  convencer  do  importante  e  decisivo  papel das instituições escolares na construção de um sentido comum, de um conhecimento e de uma  visão  da realidade que passamos a considerar como “objetiva”, “neutra”, “científica” e, inclusive, a etiquetamos, também, como “despolitizada”, de caráter neoliberal,  patriarcal,  racista  e neocolonial; esse sentido comum hegemônico faz com que esse mundo apareça imediatamente como lógico e  inevitável.  Desse modo, nós sentimos que não temos culpa nem responsabilidade sobre aquelas injustiças que conseguimos perceber (e tampouco as veremos todas), tanto sobre as injustiças que vemos ao nosso redor, quanto em países mais afastados geograficamente.

Esse neoliberalismo vai reacomodando,segundo os seus interesses,todas as dimensões do sistema educativo. Por exemplo, e de modo muito importante, nos acessos às escolas, na privatização dos ambientes escolares e, simultaneamente, pondo toda classe de obstáculos aos governos  para  atender  à  educação  pública.  Começam  a  proliferar  discursos  para  que  a população veja que a educação pública não funciona bem e que o que funciona são os negócios privados.

Uma instituição que desde o ano 2000 lança a cada três anos os ataques mais duros e  injustos  contra  as  escolas públicas  é  a  Organização  para  Cooperação  e  Desenvolvimento Econômico (OCDE), por meio desse perverso instrumento que são as provas Programme for International Student Assessment (PISA). Passei a olhar mais detidamente o que diz a OCDE; faço leituras e análises em profundidade dos  numerosos  documentos que a organização publica com grande frequência, muitos deles bastante volumosos. Vejo as políticas educativas que tratam de fazer frente ao insucesso escolar “avaliado” (pois só temos dados das matérias avaliadas pelo PISA e do que esses testes psicométricos medem), seguindo as recomendações da OCDE ou do Banco Mundial, e vou constatando que as soluções acabam por favorecer a entrada do mercado, das instituições e negócios privados para resolver todos os problemas e, em  consequência,  gerando  a  imagem  de  que  o  público  funciona  mal,  culpabilizando  os professores do ensino público, o que é muito preocupante. Pouco a pouco deixamos de falar de cidadania e passamos a falar de clientes, consumidores e produtores; não se fala das pessoas como  seres  sociais,  que  vivem  em  sociedade,  que se  necessitam  mutuamente  e,  portanto, querem e lutam por uma melhor justiça social.

Então,  nesse  último  livro,  abordo  como  as  políticas  educativas  passam  a  privilegiar determinadas áreas de conhecimento, enquanto outras áreas de conhecimento não recebem a devida importância. Há um capítulo forte, primeiro, sobre como se faz e se tomam as decisões sobre as políticas educativas, tanto no meu país como na maioria dos países da OCDE. Outro capítulo  analisa  criticamente  como  hoje, em  nossa  sociedade, prestamos  a  atenção  e valorizamos algumas áreas do conhecimento em detrimento de outras. Quando a OCDE nos compara aos países de todo o mundo, nos compara somente em quatro áreas do conhecimento –as ciências,  as tecnologias, as engenharias e  a  matemática –, agora colocaram  a educação financeira, mas ninguém nos diz a importância, o rendimento e os problemas do nosso alunado nas  humanidades,  na  filosofia,  na  ética,  nas  artes,  nem  nas  ciências  sociais;  o  que  está acontecendo? Que formação estão tendo os nossos estudantes?

. . Amani Hajeri – «Unsafe»

Que características têm todas essas áreas que a OCDE não avalia? São as áreas que nos socializam, que nos tiram de nós mesmos e nos obrigam a prestar a atenção nos outros. Nas matemáticas e nas ciências os seres humanos não aparecem, não os percebemos como seres sociais, como cidadania; somente aparecemos como quem resolve um problema de física ou de matemática, mas não irão olhar como e em que medida essa matemática ou física está sendo aplicada  com  critérios  de  justiça  social,  considerando  como  afetam  a  vida  das  pessoas.  A construção   dessas   personalidades   e   mentalidades   neoliberais,   patriarcais,   racistas   e neocolonialistas  está  sendo  conformada  por   meio  de  discursos,  práticas educativas   e curriculares,  pela  obrigatoriedade  e  atenção  prioritária  a  determinadas  matérias,  conteúdos, competências,  objetivos  e  estândares  de  rendimento,  que  acabam  por  dirigir  a  atenção  do professorado, dos estudantes e das famílias exclusivamente sobre esses conteúdos.

O  PISA,  o Progress  in  International  Reading  Literacy  Study (PIRLS)  e o Trends  in International Mathematics and Science Study (TIMSS), ao avaliar e quantificar essas matérias e competências, consideradas como “as verdadeiras chaves para o futuro das novas gerações”, funcionam  como  instrumentos  com  grande  poder  orientador  e  disciplinante  de  pessoas  e governos dos países.

Vemos como lógico o mundo ser assim e não percebemos as injustiças e o quanto nós contribuímos  para  que  elas  aconteçam.  Isso  ajuda  a  criar  rebeldes-ignorantes  ou  sábios-ignorantes, pessoas que sabem muito a respeito de um determinado assunto e nada de outros, mas aquilo que sabem, como sabem muito, há o perigo de acharem que já sabem tudo, e assim passam a opinar e a decidir sobre tudo como se fossem grandes sábios enciclopédicos. Uma boa  e  justa  educação  deve  dificultar  e,  inclusive, impossibilitar  que  as  pessoas educadas ponham essa formação recebida a serviço do capitalismo e do neocolonialismo.

Entrevistadores: Professor,  teria  como  o  senhor  falar  um  pouco  sobre  o  currículo integrado e sua contribuição para a inclusão escolar?

Jurjo Torres Santomé: O currículo integrado tem como finalidade contribuir para que os   conteúdos  culturais   e   escolares,   que   tradicionalmente   estão   organizados   de   modo disciplinar,  trabalhem  e  se  pesquisem  de  modo  muito  mais  interdisciplinar.  As  disciplinas moldam a mente, o modo de ver e de interagir com a realidade. Se somos formados sobre a base de matérias escolares parceladas em microdisciplinas, acabaremos por aprender a ver e analisar  a  realidade  de  modo  parcelado,  fragmentado, como  compartimentos  estanques. Entretanto, a realidade não existe como compartimento estanque, está tudo misturado, inter-relacionado, mas cada um de nós passa a se comportar como esses ignorantes sábios, somos sábios de uma parcelinha e, com essa parcelinha, tratamos de explicar, ver e solucionar todos os problemas que há no mundo e isso tem efeitos secundários ou colaterais (como expressava George Bush ao levar a cabo a invasão do Iraque) que costumam ser muito prejudiciais para pessoas e para o planeta.

O  ensino  integrado  é  a  resposta  à  procura  de explicações  do  porquê  esses  tipos  de comportamentos  e  decisões  profissionais  e  pessoais  estão  sendo  produzidos,  podendo, com facilidade, concluir  que  todas  as  matérias  da  carreira  e  todo  esse  conhecimento  foram construídos  em  paralelo, sem  entrecruzar-se, sem  estímulos  e  facilidades para estabelecer interconexões entre as distintas disciplinas estudadas.  Essas  pessoas  e  profissionais  têm dificuldade de saber, por exemplo, a relação que  tem a matemática com as ciências sociais, com a fisiologia e com a anatomia humana, não sabemos o que tem a ver isto com aquilo. O currículo  integrado serve  para  que,  desde  crianças,  possamos  ver  que  a  realidade  deve  ser analisada  com  múltiplas  perspectivas,  não  só  com  o  conhecimento  especializado  científico, mas com nossa vida cotidiana.

Quer dizer, se eu milito em organizações ecologistas e quero um determinado consumo sustentável e sou respeitoso com a natureza, eu não posso ir ao mercado comprar uma calça e uma  blusa  e simplesmente  ver  se  fica  bem  ou  não  em  mim.  Terei  que olhar,  inclusive, a etiqueta,  onde  foi  produzido,  por  quem,  quanto  custa  produzir  isso,  que  benefícios  têm,  do contrário posso estar militando para favorecer e ajudar o terceiro mundo e, ao mesmo tempo, estar comprando um produto que está sendo fabricado por escravos ou por crianças escravas e com matérias-primas não obtidas de modo sustentável, respeitando o equilíbrio do planeta.

Por  conseguinte,  o  currículo  integrado  tem  como  objetivo  prioritário  nos  ajudar  a construir um pensamento integrado que tome conta das tomadas de decisão, das análises que fazemos da realidade, das múltiplas perspectivas que precisam estar em inter-relação, para não cometer erros e injustiças porque não percebemos que isso estava vinculado com aquilo outro etc.

. Janine Aberg – «The Systems Which Drive Our Lives»

Entrevistadores: Professor, a gente pode falar que existe um currículo inclusivo?

Jurjo  Torres  Santomé:  Penso  que,  todavia,  estamos  muito  longe.  Um  currículo inclusivo  parte primeiro  de  uma  teoria  e  concepção  de  justiça  social,  que  assume  uma obrigação  política  e  moral com  que  todos  os  coletivos  sociais  cheguem  às  escolas  e  em condições dignas, bem alimentadas, que suas famílias tenham condições para prestar atenção suficiente, que tenham uma casa, um trabalho e salário digno, os cuidados e a satisfação das necessidades afetivas etc.; tudo isso faz parte da consideração da justiça social e educativa. A justiça curricular, por sua vez, passaria a ver de que forma, –uma vez que estamos com esses coletivos  na  escola,  os  conteúdos,  a  forma  de  organizar  os  espaços,  a  aula,  os recursos didáticos, as metodologias, os agrupamentos que fazemos dos estudantes para as tarefas e as aprendizagens  escolares  etc. –,  estamos  contemplando  esses  diferentes  coletivos  sociais  e estamos sendo respeitosos e justos com cada um deles, tratando-os como iguais em direitos e, também,  ao  mesmo  tempo,  como  diferentes.  Desse  modo,  esses  coletivos  silenciados  se convertem em visíveis e eu busco como atender as necessidades de cada um desses coletivos em minhas aulas.

Um currículo inclusivo torna obrigatório o acesso de todas as crianças às escolas, que todas elas tenham os seus direitos respeitados durante toda a sua escolarização, que se sintam valorizadas  e  constatem  que  o  seu  professorado  é  otimista  sobre  as  suas  possibilidades de aprendizagem, que confia neles e os anima sempre e, finalmente, que todas tenham sucesso escolar. A inclusão é incompatível com insucesso escolar. Se uma criança entra na escola e não tem êxito, isso significa que a justiça social ou a justiça curricular funciona mal, ou ambas funcionam  mal.  Em  alguns  locais, essas  pessoas  não  estão  sendo  reconhecidas,  ou  nos conteúdos  ou  na  forma  de  organizar  o  espaço,  nas  tarefas  que  propomos,  nos  modelos  de avaliação,  nos  recursos  didáticos  que  utilizamos  com  esse  estudante  e  o que  necessitam.  O pressuposto  é:  um  currículo  inclusivo  tem  que  dar  lugar  para  que  todo  estudante entre  no sistema  educativo  e  permaneça,  sinta-se  reconhecido,  busque  reconhecê-lo  e  tenha  sucesso escolar. Se o estudante entra na escola e abandona rápido isso significa que o currículo não é inclusivo; ou, para ser mais claro: que esse estudante que tem insucesso não está capacitado para  poder  exercer  os  seus  direitos  como  cidadão.  Não  esqueçamos  que,  em  concreto,  a obrigatoriedade da escolarização é a obrigação que a sociedade assume com as novas gerações que,  desde  o  momento  do  nascimento,  já  adquirem  a  condição  de  cidadãos, e que por intermédio da escola se capacitarão para poder exercê-la plenamente.

A justiça curricular e a justiça democrática são dimensões da mesma ideia. Não pode haver uma educação democrática se há injustiça curricular. Se há justiça curricular é porque esse conhecimento passa pelo diálogo, escuta a voz do outro, tem participação de todos e  é para  todos.  Não  deveria  haver  um  sistema  educativo  não  democrático,  uma  aula  não democrática não possibilita uma educação justa. A democracia deve ser praticada, vivida e, assim, poderemos nos ajudar e nos corrigirmos, continuamente, uns aos outros numa situação de diálogo e de liberdade de expressão.

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, Carlos Alberto Coutinho Neves de. Franquismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (Org.). Dicionário Crítico do pensamento da direita: ideias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000. p. 195-196.

APPLE, Michael W. Ideology and Curriculum. Nova Iorque: Routledge; Kegan Paul, 1979.

FANON, Frantz Omar. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FANON, Frantz Omar. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

KEY, Ellen. El siglo de los niños. Madrid: Morata, 2021.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

ONU (Organização das Nações Unidas). Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 11 dez. 2021.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. El curriculum oculto. Madrid: Morata, 1991.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Globalización e interdisciplinariedad: El curriculum integrado. Madrid: Morata, 1994.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Educación en tiempos de neoliberalismo. Madrid: Morata, 2001.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. La desmotivación del profesorado. Madrid: Morata, 2006.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. La justicia curricular: el caballo de Troya de la cultura escolar. Madrid: Morata, 2010.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Currículo Escolar e Justiça Social: o cavalo de Troia da educação. Porto Alegre: Penso, 2013.

TORRES SANTOMÉ, Jurjo. Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas. Madrid: Morata,2017.

YOUNG, Michael F. D. (Org.). Knowledge and Control: new directions in the sociology of education. London: Collier Macmillan, 1971.

[i] A  ditadura  franquista  se  institucionalizou  na  Espanha  após  1937  com  a  junção  de  três  partidos  políticos  de extrema-direita da época, tendo como líder político Francisco Franco. O franquismo teve sua base caracterizada como fascista, com cultura anticomunista, de partido único, em oposição ao liberalismo e a outros pensamentos contrários a sua ideologia, como a proibição de agrupamentos de esquerda. A ditadura franquista terminou após o falecimento de Francisco Franco, em 1975 (ALMEIDA, 2000).

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. Bansky

1 comentario

  1. ADELSON ANDRADE ALVES SOBRINHO
    25/05/2022

    Texto muito esclarecedor. Costumo dizer que a Educação é uma flor no jardim da consciência.

    Prof. Adelson Sobrinho

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