1 julio
2014
escrito por jurjo

«A rigidez do modelo educativo é uma rigidez militar»

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Entrevista com Jurjo Torres Santomé

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Jornal da Escola. Abril 2011

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Entrevista dada no âmbito da Conferência O QUE MUDAR NA ESCOLA PÚBLICA?, promovida pelo Sindicato de Professores da Grande Lisboa. Jurjo Torres é professor catedrático de Didáctica e Organização Escolar na Universidade de A Coruña.

«O que mudar na escola pública» foi o tema desta conferência. O que remete para as próprias mudanças a sociedade, nomeadamente ao nível da informação globalizada e da diversidade de origens culturais e nacionais. Na sua perspectiva, o que é mais importante mudar, tendo em conta essas alterações na sociedade?

Os sistemas educativos actualmente dominantes na escola pública têm uma origem, que é importante lembrar: um Estado que pretende formar para a cidadania. Mas numa perspectiva estritamente nacional. No caso de Portugal, de tornar os jovens conscientes de que são portugueses. Isso fez‐se com um currículo muito redutor, em que se diz: nós somos os melhores, temos uma história – que o sistema educativo vai reler e refazer – belíssima. E o mesmo nas outras matérias ‐ como geografia, matemática, literatura ‐ a ideia que se transmite é sempre que nós somos seres fantásticos. Uma abordagem que só permite uma única leitura da realidade. É a cultura dos manuais escolares. Os manuais escolares são uma fonte informativa exclusiva onde está a verdade oficial. O que implica que todos estamos de acordo em que a história é esta, a geografia é esta, a ciência é esta e as explicações dadas são todas correctas. Tal como na Bíblia … E tende a converter-nos em pessoas dogmáticas. Porque não há lugar ao debate, à dúvida, ao reconhecimento de que haja interesses, preconceitos. Pode‐se admitir que um estudante entre em contacto com o conhecimento cultural servindo‐se única e exclusivamente de uma fonte informativa?

Ricardo PonceOra este conhecimento é construído por seres humanos. Que têm o seu ego, interesses, preconceitos. E as mulheres sabem bem disso. Porque todo o conhecimento, nas diversas áreas disciplinares, era centrado no homem. E para a sua libertação e conquista da igualdade, as mulheres tiveram que demonstrar como a perspectiva masculina afectava a interpretação dos factos. No mundo em que vivemos, o mundo em que a criança vive, deparamo‐nos com uma quantidade de fontes culturais, uma sobreabundância de informação. Estou a falar desde a rádio à internet, TV, revistas científicas. Uma escola que prepara para um mundo que chamamos de informação, não se pode basear numa única fonte informativa. O que haverá que ter é muitas, diferentes, em todos os sentidos ‐ de tal forma que a pessoa aprenda a mover‐se no mundo e, portanto, aprenda a ser crítico.

E não se aprende a ser crítico manejando uma única fonte informativa, mas várias e muito diferentes. Então vamo‐nos dando conta de como há interesses ocultos ou interesses explícitos, distorções, preconceitos. Para mim essa é uma função indispensável de uma instituição escolar no mundo de hoje. Que é diverso, multicultural. Palavras com que todos concordamos, mas que muitas vezes não passam de puros slogans e não se concretizam nas práticas. Na própria sala aula, temos hoje estudantes de várias origens, como antes não tínhamos. E a escola não pode ter o mesmo discurso, veicular as mesmas imagens, como se estes novos alunos e os seus povos não existissem.

Coloca-se então aqui a questão dos próprios conteúdos e do modo de ensinar.

Uma das grandes questões que se coloca ao sistema educativo é a revisão dos conteúdos com que se está trabalhar, que não correspondem ao mundo de hoje. No mundo adulto estudamos as coisas de uma forma mais interdisciplinar. É uma organização do pensamento muito mais interdisciplinar.

No ensino, continuamos a manter estruturas e formas de organização medievais. Onde é que está a certeza, a segurança empírica de que as crianças aprendam melhor estudando língua, literatura, matemáticas e história, separadamente? Não seria possível que estudassem antes por grandes temas?

Por exemplo – direitos humanos, o mundo da pobreza, a vida nas cidades, a vida no mundo rural, o mundo da internet. Seria muito mais adequado ao mundo de hoje. Claro que nos primeiros anos de escolaridade haveria que apostar em determinadas tarefas muito elementares – a leitura, a escrita, algumas operações matemáticas. Fora disso, nada indica que uma pessoa, para saber história, deva começar por saber muitíssimo da pré-história e, progredindo, chegar ao século XX (ou não, porque não há tempo).

Com o actual sistema educativo, nada se aprende sobre questões tão importantes como: os movimentos artísticos do século XX; ou o cinema; ou acontecimentos fundamentais da história do século XX, como, por exemplo, a guerra do Vietname. Já nem falo da guerra do Golfo, que entrará no sistema educativo dentro de 40 – 60 anos…

Penso que esse tipo de debate falta. Estamos no século XX. Não estamos no século XVIII. Importa debater e rever, na escola, o mundo dos conteúdos e o mundo dos recursos didácticos. Seguidamente, ver que formação deveremos dar aos professores para trabalhar deste outro modo.

Quais as estratégias para ensinar as aprendizagens. E, por último, que modalidades de avaliação. O que se está a fazer é o contrário. É a obsessão de como avaliar. A pressão do Estado no sentido de avaliar. Comece‐se por diagnosticar, investigar. Faça‐se pesquisa. E quando tivermos evidências, definam‐se os modos de trabalhar, os modelos organizativos para a escola.

A rigidez do modelo educativo é uma rigidez militar. Parte‐se do princípio que todos os estudantes são iguais. Portanto, entram à mesma hora, saem à mesma hora, têm os mesmos recursos didácticos. O manual escolar pressupõe que todos sabem o mesmo, todos têm os mesmos interesses e as mesmas motivações. Por isso damos‐lhes os mesmos exemplos, as mesmas ilustrações. Tudo igual. E a manifestação deste saber manifesta‐se exclusivamente na resposta às perguntas. Este tipo de questões são decisivas, são urgentes. E pressupõem que se abra um debate.

Eu sou um crítico. Penso que a crítica é uma dimensão incontornável. É fundamental aprender a ler criticamente. Uma aprendizagem que começa em criança e só termina no dia em que se morre. Entretanto, é sempre possível melhorar esta capacidade crítica. O que pressupõe um esforço, que se tome consciência disso e se trabalhe para tal. Penso que nos falta esse tipo de questionamento. Rever os modelos organizativos. São modelos muito militares. Normalizadores.James W. Johnson

Educar para o optimismo é um dos princípios que defende. Em termos práticos – como?

Há uma forma de informação em que se trabalha, se diagnostica o problema e se fala da realidade como é, de dura e injusta como é ou foi. Mas, ao mesmo tempo, se procuram caminhos de saída. Penso que é esse o caminho. São três os grandes temas que, na minha opinião, se fossem abordados pelo sistema educativo, fariam com que tivéssemos a geração de adultos mais optimistas da história.

Antes do mais, a escravatura. Ensinar que houve uma época em que existiu a escravatura. E que todos os filósofos, as pessoas mais sábias do mundo, a justificavam: uns nasceram para escravos e outros nasceram para cidadãos. Que fizeram os escravos e algumas pessoas que não eram escravos, mas que se foram dando conta do que se passava, para ir modificando esta situação? E como é que se situaram, nesse processo, os grandes filósofos e pensadores? Entretanto, a escravatura passou a ser considerada um delito. E a ONU estabeleceu, com todos os países do mundo, que a escravatura é ilegal. É verdade que hoje também pode haver situações de escravatura. Mas é ilegal. Não há nenhum argumento científico, nenhuma teoria, nada que a defenda. É um delito, per si. O que é que aconteceu? Como foi possível esta evolução? Se conseguimos isso, que pode haver hoje no mundo mais difícil do que foi então lutar contra a escravatura?

Outro tema: o nazismo. Como é que um dos povos mais cultos do mundo, os alemães, elege democraticamente alguém como Hitler? E comete as barbaridades que sabemos? Como é que as universidades e os diferentes campos de conhecimento trabalharam no sentido de construir um conhecimento racista e nazi? E como se desmontou tudo isso?

Uma outra área, que permite um grande optimismo: a história das mulheres. Num determinado período da história pôs‐se mesmo em causa se seriam seres racionais. Nos anos 70, toda a ciência e a psicologia, diziam: as mulheres não são iguais aos homens. O seu pensamento lógico, matemático, é muito deficitário. Só são iguais aos homens nas capacidades linguísticas. Os sábios antigos, como Aristóteles ou Demócrito, defendiam que só os homens deveriam votar (não as mulheres). Que aconteceu ao longo destes séculos, que tipo de ideias se desenvolveram, que linhas de intervenção se implementaram para que, hoje, o simples enunciado de tais afirmações seja delito? Como se reviu todo o conhecimento? Que é que foi feito? O currículo optimista desenvolve estas ideias. O currículo optimista não é, nem pouco mais ou menos, infantilização. Infantilização é evitar falar às crianças de como os adultos podem também ser maus e a humanidade injusta. É mantê‐las numa espécie de Disneylândia. O problema é: quando essa mesma criança sai da escola e regressa a casa vai deparar com um pai que está desempregado, uma mãe que está desempregada, uma casa em que se passa fome, uma casa degradada, um bairro em que muitas vezes não há arruamentos. E vai querer explicações. E a criança precisa dessas explicações. Se a escola não ajuda, cada um irá procurá‐las, por si. Mas poderão encontrar‐se explicações falsas e pode‐se acabar a odiar os próprios pais. E a ocultar, a mentir sobre quem se é. Há muitas crianças que mentem sobre quem são os seus pais e envergonham‐se deles e não querem que os venham buscar à escola, porque não são como eles gostariam. E não há ninguém que lhes diga: que sorte que tens por ter tais pais, porque, apesar de viverem tão mal, te dão tudo o que lhes é possível.

O sistema educativo deveria explicar estas realidades. E poderia explicá‐lo optimisticamente. Dizer que têm que ser corrigidas as injustiças e que por isso devemos lutar e estamos lutando na sociedade.

Que importância é que podem assumir, neste contexto, as experiências e projectos inovadores, alternativos, que são implementados em escolas por iniciativa de professores?

A mim parece‐me maravilhoso. A escola tem que atender a realidades peculiares e é lógico que os profissionais a adaptem a essas realidades. Mas, claro que o profissional tem que explicar o que está a fazer e porquê. Essas inovações, há que as justificar e explicar bem. Todo o projecto educativo que se implementa tem que estar muito bem justificado, muito bem argumentado. Porque é que vamos fazer isto, porque é que esta opção é melhor que a outra. E depois dar‐lhe seguimento e implicar o maior número de pessoas nesse projecto. Mas sempre explicando o que se está a fazer e porquê. O importante é que o colectivo de professores ou professoras que introduz inovações, procure e tenha explicações para isso. Contribuindo assim, com o seu conhecimento, para outras experiências idênticas. Para a teoria educativa essas coisas são importantes.

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Ana Sanchez Marin - Arboleda

Ana Sánchez Marín – Arboleda

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